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Dinheiro público, desfaçatez privada

Sem qualquer controle, ‘Pix orçamentário’ financia gastos eleitoreiros de parentes de parlamentares, enquanto faltam recursos para as reais prioridades do País

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Por Notas & Informações
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O governo federal depositará na conta de prefeituras escolhidas a dedo cerca de R$ 3,2 bilhões em plena campanha eleitoral, mostrou recente reportagem do Estadão. Esse montante, indicado por parlamentares por meio das chamadas “transferências especiais”, vulgarmente conhecidas como “Pix orçamentário”, poderá ser usado livremente pelos prefeitos, que não terão que prestar contas a rigorosamente ninguém, a não ser à consciência de cada um. 

O problema é que essa apropriação desavergonhada do suado dinheiro público não parece tirar o sono dos envolvidos. Muitos prefeitos sortudos são parentes dos deputados e senadores que indicam a transferência dos recursos para seus municípios.

Cada parlamentar tem direito a indicar R$ 18,4 milhões via “Pix orçamentário”, que assim é conhecido justamente porque o dinheiro entra direto na conta das prefeituras e a transferência não está submetida a qualquer tipo de escrutínio institucional. Trata-se de livre disposição de dinheiro público, é tão simples quanto isso.

A fim de dar uma demão de moralidade nessa bagunça, metade daquele montante deve ser empregada na área da saúde, ainda que “saúde” seja um termo vago o suficiente para servir a muitos propósitos estranhos – e de qualquer maneira ninguém, de fato, consegue fiscalizar onde e como o dinheiro foi empregado. Já a utilização da outra metade fica condicionada exclusivamente à vontade dos prefeitos – e, evidentemente, aos acordos que eles firmaram para receber os recursos. Os prefeitos podem custear a compra de tratores e ônibus, grandes ativos eleitorais, e podem bancar shows para a população até uma semana antes da eleição. A burla da legislação eleitoral é gritante.

O dinheiro do Orçamento que sobra para essas ações eleitoreiras e, provavelmente, para o enriquecimento ilícito de agentes públicos é o mesmo que falta para investimentos nas áreas da saúde, educação, ciência e tecnologia e proteção do meio ambiente. Há R$ 3,2 bilhões para comprar ônibus, tratores e bancar shows de artistas às vésperas da eleição, mas não há, por exemplo, R$ 2,6 bilhões para o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), o principal instrumento de financiamento público de pesquisas científicas do País.

Algo está muito errado. Especialistas em contas públicas ouvidos pelo Estadão foram unânimes ao defender uma reforma urgente do Orçamento, que precisa se reencontrar com as prioridades nacionais. Talvez seja hoje a principal agenda nacional.

Se a deterioração moral e administrativa que marca o atual governo não poupou área alguma, em poucas ela pode ser tão sentida como no manejo do Orçamento. Esteio da administração pública, um Orçamento que equilibre bem os interesses da sociedade é o retrato mais bem acabado de uma democracia representativa saudável. Porém, em poucos momentos de nossa história republicana, o Orçamento esteve tão descolado das prioridades nacionais como agora, notadamente nos últimos dois anos.

A fraqueza do chefe do Poder Executivo é diretamente proporcional à força acumulada por oportunistas no Poder Legislativo. O patrimonialismo jamais se converteu em uma mazela superada, marcando a experiência política do País há séculos. Entretanto, é possível afirmar, sem correr o risco de cometer uma injustiça, que a atual legislatura é uma das mais corrosivas ao Orçamento.

Nos últimos meses o Estadão tem revelado ao País como o pavor do presidente Jair Bolsonaro de perder o cargo e, assim, ter de responder à Justiça por seus atos e omissões resultou na captura do Orçamento por lideranças do Congresso de forma absolutamente incompatível com o arranjo institucional do Estado brasileiro inaugurado pela Constituição de 1988. Mais do que com a anuência, com a efetiva participação do Palácio do Planalto, grande parte dos parlamentares, sob a liderança de próceres do Centrão, se refestela com recursos públicos por meio de esquisitices como o “orçamento secreto” e o “Pix orçamentário”, que afrontam, a olhos vistos, os mais comezinhos princípios republicanos.