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Empresa treina, Estado educa

Setor privado pode treinar e multiplicar capital humano, como já tem feito, mas isso não pode servir de pretexto para que se elimine ou reduza a responsabilidade estatal sobre a educação

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Por Notas & Informações
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Grandes empresas estão investindo em educação, e até criando faculdades e escolas técnicas, para contornar a escassez de mão de obra necessária às suas atividades. Iniciativas desse tipo têm sido desenvolvidas em vários setores. Grupos financeiros, da indústria e do setor de saúde estão entre exemplos citados em reportagem recente do Estadão. Levantamentos da Confederação Nacional da Indústria (CNI) têm mostrado carência de trabalhadores qualificados e – mais grave – também de pessoal qualificável, isto é, em condições de ser treinado no ambiente empresarial. Muito importante para as próprias companhias, para o mercado e para muitos jovens carentes de oportunidades, esse tipo de iniciativa deve ser, normalmente, um complemento da educação essencial oferecida a todos os brasileiros. Essencial, neste caso, é aquela formação indispensável, em cada fase histórica, à preparação do indivíduo para uma vida produtiva e decente. Essa formação é direito básico de cada pessoa e, portanto, responsabilidade do poder público.

Além de ser direito individual, a educação é componente necessário de qualquer política econômica de longo alcance, voltada para o crescimento, para a modernização produtiva, para a criação de oportunidades e para a melhora geral das condições de vida. Do ponto de vista da produção, essa política inclui a formação e a transformação do capital humano, cada vez mais importante no conjunto dos meios indispensáveis a todo tipo de atividade.

Brasileiros muito jovens talvez nem entendam essa linguagem. Afinal, o País em breve completará, no poder central, quatro anos sem política econômica de longo prazo, sem metas de crescimento e de modernização e, além disso, quatro anos de devastação da cultura, da política educacional e até do Ministério da Educação. Em vez desses valores, o Brasil teve pastores negociando com prefeitos a transferência de recursos ministeriais, funcionários da área cultural promovendo a difusão de armas e o deputado Daniel Silveira, orgulhoso de seu analfabetismo cívico, mimoseado com a Medalha da Ordem do Mérito do Livro da Biblioteca Nacional. A honraria também foi atribuída ao presidente Jair Bolsonaro, defensor de clubes de tiro em lugar de bibliotecas.

O presidente Bolsonaro certamente agravou – e muito – os problemas educacionais, mas o País já andava mal, nesse quesito, antes de ser hasteada em Brasília a bandeira da ignorância, da anticultura e da grosseria. Na última edição do Pisa, o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, o Brasil ficou, mais uma vez, entre os últimos colocados. Jovens de 79 países participaram da prova. Os brasileiros ficaram em 57.º lugar em leitura e interpretação de texto, em 66.º em ciências e em 70.º em matemática, alcançando 413 pontos como nota média. A média obtida pelo conjunto dos estudantes de países-membros da OCDE, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, foi 487.

O analfabetismo continua assustador. Entre 2016 e 2017 a parcela de analfabetos com 15 anos ou mais diminuiu de 7,2% para 7%, permanecendo acima da meta (6,5%) fixada para 2015 pelo Plano Nacional de Educação. Mas há estatísticas mais feias. Segundo o Indicador de Analfabetismo Funcional divulgado em 2018, 29% dos brasileiros com idades entre 15 e 64 anos tinham dificuldade para interpretar textos, cumprir tarefas descritas em documentos simples e realizar operações matemáticas elementares.

Analfabetos funcionais sabem escrever seu nome e identificar letras e números, mas são incapazes de assumir tarefas acima dos níveis mais elementares de complexidade. Um país com esse quadro social dificilmente conseguirá avanços significativos e duradouros na economia e nos padrões de bem-estar. Cuidar dos níveis educacionais básico e fundamental é uma óbvia prioridade nacional, há muitos anos, mas as políticas federais têm passado longe dessa questão. Entidades privadas e organizações da sociedade civil podem atuar no enfrentamento do problema. Não há, no entanto, como negar ou disfarçar a responsabilidade pública nesse campo.