Se a área econômica do governo do Estado de São Paulo acata o princípio da responsabilidade fiscal e a legislação que estabelece teto de gastos para o poder público, faz sentido que ela adote um programa com o objetivo de estimular fiscais e auditores a ampliar o número de multas, pagando gratificações que levariam essas categorias profissionais a ganhar acima do teto constitucional do funcionalismo?
Ao julgar uma ação impetrada em 2018 pela Procuradoria-Geral de Justiça, questionando a constitucionalidade de bonificações por resultados pagas a servidores das Secretarias da Fazenda e de Planejamento, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) respondeu negativamente a essa indagação. Segundo o Órgão Especial da Corte, a legislação que criou essas gratificações afronta a Constituição, em termos jurídicos, e o bom senso, em termos administrativos. Afinal, nada justifica conceder vencimentos extras para que os servidores façam, justamente, o serviço para o qual foram contratados.
Além de inconstitucional, o pagamento dessas bonificações é duplamente imoral. Em primeiro lugar, porque seus beneficiários estão na elite do funcionalismo, recebendo os salários mais altos da máquina estadual. E, em segundo lugar, porque os ganhos extras dos servidores da elite prejudicam o equilíbrio das contas públicas. “É por causa de gratificações como essas que o Estado brasileiro não para de crescer”, disse o relator, desembargador Ferreira Rodrigues.
Apesar da precisão e clareza desse argumento, a decisão do Órgão Especial não foi aprovada por unanimidade. Um dos desembargadores vencidos alegou que as decisões judiciais já reconheceram que vantagens de caráter individual – como uma gratificação – não devem ser somadas à remuneração, para efeito de cálculo do teto constitucional. Citando a jurisprudência, afirmou que bonificações têm a característica de “prestação pecuniária eventual”. Mas, por 21 votos contra 3, o Órgão Especial endossou o argumento do relator, que lembrou que essa jurisprudência é antiga e não vem sendo aplicada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2014.
A decisão do TJSP veio na hora certa, uma vez que vários Estados estão aprovando gratificações para que auditores e fiscais ampliem o número de multas aplicadas aos contribuintes. Até o governo federal instituiu uma gratificação com esse objetivo, chamada de “bônus de eficiência”, paga aos servidores da Fazenda Nacional. Os valores são calculados com base na arrecadação de multas e divididos entre fiscais, auditores e até os conselheiros do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) oriundos do Ministério da Fazenda. O órgão julga no plano administrativo os recursos impetrados pelos contribuintes que questionam a validade da autuação e o montante das multas. Por isso, o pagamento do “bônus de eficiência”, a exemplo do que acontece no órgão congênere paulista, o Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo, acaba comprometendo a isenção dos conselheiros.
Por isso, do mesmo modo como a Procuradoria-Geral de Justiça de São Paulo levou o caso à última instância da Justiça estadual, a mesma discussão jurídica vem sendo travada na Justiça Federal. O pagamento do “bônus de eficiência” foi considerado constitucional pelo Tribunal Regional Federal da 1.ª Região, mas a decisão definitiva será dada pelo STF, que ainda não tem data para julgar o recurso. Segundo procuradores e advogados, bonificações pagas a servidores da área fiscal representam uma grave distorção política e jurídica. Isto porque, em vez de trabalhar com rigor, cuidado e isenção, fiscais e auditores aplicam multas apenas para, sobre elas, obter ganhos extras.
Assim, em vez de ser um instrumento de correção de erros e fraudes, essas multas não passam de um instrumento artificial para aumento de arrecadação, levando auditores e fiscais a desprezar os direitos mais elementares dos contribuintes. Em São Paulo, o TJSP deu um basta a essa estratégia perversa das autoridades tributárias. Resta esperar que o STF faça o mesmo.