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Guerra contra a cultura

Desmantelamento da cultura vem crescendo cada vez mais com o governo Bolsonaro

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Por Notas & Informações
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O presidente Jair Bolsonaro subiu ao poder como paladino de uma “guerra cultural” em nome dos valores tradicionais e contra supostos não patriotas. Se já não fosse alarmante a ideia de um governo de todos os brasileiros movendo guerra contra alguns, a realidade é mais perniciosa: não uma guerra contra tal ou qual cultura, mas uma guerra contra a cultura.

Mapeando detalhadamente o rastro de destruição dessa guerra, a

Já em seus primeiros dias, sob o pretexto em si pertinente das pressões fiscais, o governo rebaixou o status do Ministério da Cultura, subordinando-o como Secretaria primeiro ao Ministério da Cidadania, depois ao do Turismo, e interrompendo o fornecimento de verbas e a continuidade de políticas públicas sem maiores justificativas técnicas.

Em dois anos, foram seis secretários com os perfis cada vez mais diferentes e menos qualificados, culminando na indicação do ator Mário Frias, um militante bolsonarista sem experiência em gestão cultural. Para o comando da Secretaria de Fomento, foi recrutado o ex-PM André Porciuncula, notório por suas provocações a artistas e produtores culturais. Essa intrépida trupe promoveu toda sorte de demissões e exonerações de técnicos e especialistas, em um “aviltante processo de perseguição e tentativa de controle político partidário ideológico”.

Mas este é só o pano de fundo. O objeto da ação são as limitações ilegais e intervenções indevidas no procedimento de aprovação dos projetos culturais no âmbito da Lei Rouanet, o principal mecanismo de fomento à cultura.

Note-se que não cabe ao poder público escolher quais projetos serão financiados, e sim às pessoas físicas ou jurídicas que optam por destinar uma parte de seus impostos a projetos que consideram valiosos. Não é função da Secretaria avaliar a qualidade dos projetos – se têm ou não “valor” –, mas apenas a sua adequação a critérios formais, como a compatibilidade do orçamento aos valores de mercado ou a competência técnica dos produtores.

Mas o governo não só limitou drasticamente a quantidade de projetos aprovados, como está fazendo – ou tentando fazer – aquilo mesmo que recriminava em seus opositores: orientar as aprovações conforme suas afinidades político-ideológicas.

Entre 2011 e 2020, foram aprovados em média 8,7 mil projetos por ano. Para 2021, a pasta estabeleceu uma meta arbitrária de 4,4 mil análises. Como nem todos os projetos analisados são aprovados, e nem todos os projetos aprovados captam recursos, estima-se que em 2021 seriam executados apenas 316 projetos – cerca de 1/5 da média anual da última década. Para piorar, a Secretaria vem negando a prorrogação dos prazos de captação para os projetos aprovados, prevista legalmente em situação de casos fortuitos, como a pandemia.

Mais grave é o uso político. A pasta determinou a suspensão da captação de projetos em praças onde vigoram restrições à circulação, alegando, com flagrante hipocrisia, riscos de aglomeração. Isso impede que os projetos captem recursos para a execução após a flexibilização das restrições. Assim, para retaliar os governos subnacionais contrários à política bolsonarista de enfrentar o vírus de “peito aberto”, o governo está asfixiando as produções.

De resto, a pasta não publicou o edital de convocação da Comissão de Incentivo à Cultura, o órgão colegiado responsável pela aprovação dos projetos, e concentrou arbitrariamente seus poderes nas mãos de Porciuncula.

Bolsonaro chegou ao poder capitalizando as inquietações do eleitorado com as ambições de hegemonia cultural das militâncias de esquerda, cuja expressão mais nefasta é a chamada “cultura do cancelamento”. Ao invés de sanear os mecanismos públicos de fomento à pluralidade de ideias e valores, neutralizando o autoritarismo da cultura do cancelamento, o autoritarismo bolsonarista está promovendo indiscriminadamente o cancelamento da cultura.