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Irrealismo corporativo

Graças a artifícios para burlar o teto constitucional, a média salarial no Judiciário é quase o triplo da média do Executivo

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Por Notas & Informações
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Na mesma época em que os jornais noticiaram que o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) vem pagando R$ 56 mil por mês, em média, a cada um de seus 360 desembargadores ativos e aos 400 aposentados - um valor bem acima do teto salarial do funcionalismo público fixado pela Constituição, hoje no valor de R$ 39,2 mil -, juízes e desembargadores do Judiciário e membros do Ministério Público reagiram de modo contundente à proposta do governo de reduzir de 60 para 30 dias as férias dos integrantes das duas corporações. Atualmente, magistrados e procuradores têm direito a dois meses de férias, o que é uma exceção em todo o mercado de trabalho do País. Dias antes, a imprensa também havia noticiado o plano da Justiça paulista de construir, num período de escassez de recursos, uma “cidade judiciária” - iniciativa que em boa hora foi suspensa.

Esses fatos dão a medida do grau de irrealismo e desconhecimento da comprometedora situação financeira do poder público por parte de corporações que sempre foram das mais bem remuneradas do funcionalismo. Graças a artifícios para burlar o teto constitucional, os chamados penduricalhos, a média salarial no Judiciário é quase o triplo da média do Executivo. Ao justificar a proposta de redução das férias da magistratura, a equipe econômica do governo apresentou argumentos sensatos. Do ponto de vista financeiro, deixou claro que as prioridades dos gastos públicos devem ser voltadas para áreas que prestam serviços básicos, como saúde e educação. Do ponto de vista administrativo, alegou que a redução das férias dos magistrados e procuradores tem o objetivo de reduzir gastos, aumentar a eficiência e melhorar a qualidade dos serviços prestados aos jurisdicionados. E, do ponto de vista político e moral, afirmou que não faz sentido garantir a duas corporações direitos que não são concedidos aos demais trabalhadores dos setores público e privado. Em outras palavras, férias de dois meses seriam uma regalia injusta gozada, paradoxalmente, por quem tem de aplicar a justiça.

Como ocorreu todas as vezes em que viram seus privilégios ameaçados, magistrados e procuradores relegaram a ética para segundo plano e recorreram aos argumentos de sempre. O procurador-geral da República, Augusto Aras, classificou de “desumana” a proposta do governo, sob a justificativa de que “os procuradores têm de atender jurisdicionados e advogados em qualquer dia e hora”. As entidades de juízes e promotores, que têm 40 mil filiados, afirmaram que eles costumam levar trabalho para casa, para “cumprir prazos e metas de produtividade aos sábados, domingos e feriados”. Também disseram que os parlamentares que votarão a proposta do governo têm pelo menos 70 dias de recesso por ano, sugerindo assim que não teriam autoridade para aprovar o projeto. Alegaram ainda que, apesar de terem horário para começar as audiências, mas não para terminá-las, não ganham hora extra. Por fim, disseram que igualar os membros das duas corporações ao servidor público em geral é ignorar “importantes atribuições funcionais que lhes foram conferidas pela Constituição” - atribuições que dependem de formação técnica que o servidor comum não teria.

Esses argumentos não procedem. São justificativas esfarrapadas que não persuadem ninguém. Eles só comprometem a credibilidade de quem as enuncia. O irrealismo da Justiça e do Ministério Público não é novo e cresceu principalmente depois da promulgação da Constituição, que ampliou as prerrogativas das duas instituições. Na década de 1990, a equipe econômica do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso já chamava a atenção para o descaso do Judiciário com o gasto público e lembrava que, se os Três Poderes são autônomos, o Tesouro é um só. Independentemente das polêmicas que poderão surgir em torno dos demais pontos do projeto de reforma administrativa, ao propor um mês de férias para magistrados e procuradores, o governo acertou. Não será fácil superar os óbices legais para implementar essa medida, mas esse é o caminho.