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Leniência demanda clareza jurídica

Os acordos de leniência precisam de um marco jurídico adequado. Não podem se prestar à impunidade de empresas nem à promoção política de agentes estatais

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Por Notas&Informações
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A informação, revelada pelo Estadão, de que grandes empreiteiras tentam renegociar valores definidos em acordos de leniência é mais um dado a expor as muitas dúvidas que recaem sobre esse instrumento jurídico, instrumento esse que, em tese, deveria ser útil para uma maior moralidade pública. No panorama nacional, dois aspectos sobressaem-se: falta um marco jurídico adequado aos acordos de leniência e seu uso exige cuidado. Além de não serem a panaceia prometida, acordos malfeitos podem gerar mais danos e desequilíbrios.

Assim como as delações premiadas, os acordos de leniência nasceram em um sistema jurídico diverso ao do Brasil, com princípios de funcionamento e atores institucionais diferentes. É um equívoco pensar que basta incluir na legislação nacional essa possibilidade de transação para que surjam os pretendidos efeitos positivos. A importação de um instrumento jurídico exige rigor técnico e serenidade.

No Brasil, o acordo de leniência foi introduzido há mais de 20 anos na legislação antitruste (Lei 10.149/2000, agora tratada na Lei 12.529/2011). Foi uma experiência setorizada, envolvendo um único órgão público, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Em 2013, com a aprovação da Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), o Congresso deu um passo muito maior, instituindo essa possibilidade de transação “no âmbito da responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública”. Com efeitos sobre todo o Estado brasileiro, o tratamento do tema pela Lei Anticorrupção é regulado em apenas dois artigos (art. 16 e art. 17), o que é manifestamente insuficiente.

Por exemplo, a Lei 12.529/2011 define que o Cade, por intermédio de sua Superintendência-Geral, poderá celebrar acordo de leniência. Um único ente público está, portanto, autorizado a celebrar os acordos no âmbito do Direito Concorrencial. Já a Lei 12.846/2013 dispõe que “a autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública poderá celebrar acordo de leniência”. Com isso, inúmeros órgãos estatais ganharam poder negocial, gerando uma grande interseção das competências, o que é administrativamente ineficaz, acarreta mais gastos públicos e gera insegurança jurídica.

Só no âmbito federal, um único caso pode envolver a Controladoria-Geral da União (CGU), o Tribunal de Contas da União (TCU), o Ministério Público Federal (MPF) e o próprio Cade. Além disso, muitos processos têm implicações nas esferas federal, estadual e municipal, o que multiplica os órgãos em tese autorizados a celebrar o acordo de leniência.

A pretexto de resolver deficiências da lei, mas trazendo novas dúvidas, a então presidente Dilma Rousseff editou, em 2015, a Medida Provisória (MP) 703/2015, que não foi aprovada pelo Congresso. Em 2018, a AGU e o MPF elaboraram um entendimento sobre os acordos de leniência, prevendo que os diversos órgãos participassem desde o início das tratativas. A despeito das boas intenções, o documento confirmou a ausência de um tratamento legal minimamente adequado.

Esse cenário jurídico-institucional pouco preciso tem sido ocasião de um notório voluntarismo por parte de agentes públicos. Em 2017, por exemplo, o Tribunal Regional Federal (TRF) da 4.ª Região teve de lembrar que o MPF não podia sozinho celebrar acordos de leniência envolvendo atos de improbidade administrativa, uma vez que o Ministério Público não pode dispor de patrimônio público.

Um efeito colateral dessa situação é o desgaste da autoridade do Estado. Para que um acordo de leniência produza os efeitos esperados – é o que se vê nos países onde foi criado –, a palavra do órgão público deve ter validade garantida. Caso contrário, uma porta estará sempre aberta para rever as condições, como se vê agora aqui.

Os quase dez anos de vigência da Lei 12.846/2013 oferecem muitos aprendizados. Acordo de leniência não é manobra de impunidade ou para promover politicamente agente estatal, com anúncio de cifras bilionárias. A prevenção e a punição da corrupção só são eficazes nos trilhos da lei.