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Liberdade ainda que tardia no saneamento

Por décadas grupos de interesse obliteraram a modernização do setor. O País não pode poupar esforços para quitar essa dívida histórica e pôr fim à sua maior tragédia humanitária

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Por Notas&Informações
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O saneamento é a expressão mais brutal do atraso e da desigualdade no Brasil e, ao mesmo tempo, da ineficiência de um Estado obeso e aferrado a privilégios corporativos.

Os números são bem conhecidos e persistentes: quase metade da população não tem acesso a esgoto; 35 milhões de pessoas não têm água potável; mais da metade do esgoto não é tratada.

É uma catástrofe moral, social, ambiental e econômica. Estima-se que diariamente mais de 40 pessoas morrem e quase 1.000 são internadas por doenças ligadas à falta de saneamento, como diarreia ou febre tifoide. Quase 40% de toda a água encanada é desperdiçada e todos os dias são despejadas 5,3 mil piscinas olímpicas de esgoto nas águas brasileiras. Especialistas calculam que cada real investido em saneamento gere um retorno de até R$ 4 por meio da geração de empregos, produtividade do trabalho, valorização imobiliária, turismo ou economias com saúde.

Na última década, os investimentos não chegaram à metade dos R$ 25 bilhões anuais estabelecidos no Plano Nacional de Saneamento para atingir as metas de universalização: água potável para 99% da população e coleta e tratamento de esgoto para 90% até 2033. Para piorar, os investimentos vinham caindo e o cálculo parece defasado: especialistas apontam a necessidade de investir entre R$ 30 bilhões e R$ 60 bilhões ao ano.

A Constituição previu que os serviços públicos fossem precedidos de licitação e proibiu tratamentos privilegiados às estatais. No entanto, mais de 30 anos depois, ao contrário de áreas como energia, transporte ou telecomunicações, as companhias estaduais continuavam monopolizando o mercado. As parcerias público-privadas, mesmo atendendo apenas 6% dos municípios, respondem por 20% dos investimentos.

O Marco do Saneamento de 2020 desmantelou essa máquina do atraso. Ao centralizar na Agência Nacional de Águas (ANA) a regulação dos serviços, permitir a regionalização do saneamento por meio da montagem de blocos intermunicipais e, sobretudo, obrigar a licitação dos contratos, o Marco garantiu a segurança jurídica e a competitividade aptas a atrair investimentos e gerar eficiência.

Associações do setor estimam que os investimentos devem crescer em média 4,1 vezes. Os primeiros leilões foram marcados por forte concorrência e altos ágios, chegando a elevar os investimentos em 15%. Ao abrir o mercado à iniciativa privada, o Marco ainda possibilita ao Poder Público focar esforços onde eles são indispensáveis para amparar os municípios mais precários com subsídios estruturais e financeiros.

O Marco criou as condições para uma verdadeira revolução subterrânea. Mas não sem resistência. Um dia antes de sua sanção, 16 governadores solicitaram à presidência que fosse mantida a possibilidade de renovação dos contratos das estatais por 30 anos sem licitação. Em torpe desserviço às suas populações, muitos desses governantes e associações corporativas ainda tentaram barrar a licitação na Justiça. A maioria está nas Regiões Norte e Nordeste, onde, não por acaso, só 12% e 28% da população, respectivamente, conta com coleta de esgoto.

O levantamento divulgado pela ANA da capacidade econômico-financeira das prestadoras de serviço é mais uma prova da importância do Marco e do ônus do atraso na sua aprovação.

Em mais da metade dos municípios, sobretudo no Norte e Nordeste, as prestadoras não comprovaram capacidade para a universalização. Pela lei, seus contratos devem ser cassados e as operações devem ser licitadas, com a participação da iniciativa privada. Cabe aos órgãos reguladores subnacionais e aos municípios conduzir os processos de caducidade.

Não se deve subestimar as forças do atraso. As criaturas do esgoto político conseguiram postergar por décadas a extinção dos privilégios que mantêm dezenas de milhões de brasileiros soterrados na degradação. A sociedade e seus representantes eleitos precisam se municiar para cobrar sem trégua a relicitação pelas autoridades locais e, em caso de omissão, a atuação do Ministério Público. É um imperativo moral, social, econômico e ambiental.