Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Manobras de exceção

Valendo-se da pandemia, algumas ações almejam o exercício do poder além dos limites legais

Exclusivo para assinantes
Por Notas & Informações
2 min de leitura

A pandemia do novo coronavírus levou o País a uma situação excepcional, com graves consequências para a população e a atividade econômica. Se alguém tivesse anunciado há seis meses a situação que o mundo vive atualmente, com tantas restrições e incertezas, poucos lhe dariam crédito. O anúncio soaria como algo próprio de uma obra de ficção, e não como cenário da vida real.

O reconhecimento da excepcionalidade das atuais circunstâncias não autoriza, no entanto, manobras que tentam, em alguma medida, subtrair a normalidade da vida institucional. Mais do que nunca, o País precisa de um Estado Democrático de Direito funcionando normalmente. Só assim o poder público será capaz de enfrentar eficaz e responsavelmente a pandemia do novo coronavírus. Escapes da ordem legal não agregam nenhuma eficiência ao combate da covid-19. Se o poder deve ser sempre exercido dentro da lei, o submetimento ao leito legal é ainda mais necessário em circunstâncias extraordinárias.

Causam, pois, estranheza, algumas recentes ações que, valendo-se da pandemia do novo coronavírus, almejam o exercício do poder além dos limites legais. É necessário estar alerta.

Na segunda-feira passada, a Advocacia-Geral da União (AGU) ajuizou ação no Supremo Tribunal Federal (STF) postulando que as medidas provisórias (MPs) editadas pelo presidente da República tenham validade superior ao que determina a Constituição. A manobra é absurda. A AGU pede ao Supremo que, por força do estado de calamidade pública, considere o Congresso em recesso parlamentar, o que, segundo a Constituição, faz suspender os prazos de validade de medida provisória. “O prazo a que se refere o § 3.º contar-se-á da publicação da medida provisória, suspendendo-se durante os períodos de recesso do Congresso Nacional”, diz o art. 62, § 4.º da Carta Magna.

É evidente que o Congresso não está em recesso. A Câmara dos Deputados e o Senado tomaram as devidas providências para que a pandemia do novo coronavírus não impedisse o funcionamento das atividades legislativas. Assim, a conclusão é cristalina. Se o Poder Legislativo não está em recesso, é uma agressão ao Estado Democrático de Direito afirmar que o Congresso está em recesso, como se sua atuação fosse inútil ou irrelevante. O Congresso está em funcionamento e nada impede que exerça a tempo sua competência de avaliar as medidas provisórias.

Autorizar o poder presidencial além dos limites constitucionais, por meio de uma ampliação indevida do prazo de validade das medidas provisórias, é caso paradigmático de exercício abusivo do poder. A pandemia afeta enormemente a vida social, mas não afeta a vigência da Constituição, que continua valendo. Cabe ao Supremo rejeitar prontamente a manobra da AGU. Em vez de pôr o Congresso em recesso, o estado de calamidade pública reclama um Legislativo atuante.

Outra medida que causou desconcerto foi a alteração da Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), restringindo a transparência do poder público, por meio da Medida Provisória 928/20. Valendo-se de um ato que, em tese, vinha dispor de “medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus”, o presidente Jair Bolsonaro suspendeu os prazos de resposta a pedidos de acesso à informação, para todos os órgãos federais com funcionários em quarentena ou em home office. A MP 928/20 também negou possibilidade de recurso contra pedido de informação rejeitado, impedindo, assim, a reavaliação dos casos de resposta negativa.

Na quinta-feira passada, em ação impetrada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o ministro do STF Alexandre de Moraes concedeu liminar suspendendo a eficácia das mudanças na Lei de Acesso à Informação, uma vez que a MP 928/20 “pretende transformar a exceção – sigilo de informações – em regra, afastando a plena incidência dos princípios da publicidade e da transparência”. A tempo, o Judiciário tolheu a manobra. O combate à pandemia exige seriedade e cumprimento da lei, e não malandragens.