Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Mau conselho

A medida do presidente Jair Bolsonaro de reduzir o Conad resume o tratamento que ele tem dado aos conselhos, além de manifestar sua visão equivocada da arquitetura institucional brasileira

Exclusivo para assinantes
Por Notas & Informações
Atualização:
2 min de leitura

O presidente Jair Bolsonaro reduziu, por decreto, o número de integrantes do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) de 31 para 14, extinguindo as vagas para representantes indicados por organizações da sociedade civil e mantendo apenas as dos Ministérios e órgãos federais. A medida resume o tratamento que o presidente tem dado aos demais conselhos, além de manifestar mais uma vez sua visão equivocada da arquitetura institucional brasileira e seus pendores arbitrários.

Conselhos, comissões e outros colegiados vinculados ao Poder Executivo, em âmbito federal, estadual ou municipal, existem há mais de cem anos, mas tiveram seu ponto de inflexão na Constituição de 1988, denominada “Cidadã” justamente por instituir, entre outras coisas, mecanismos que permitem à sociedade civil elaborar, implementar e supervisionar políticas públicas. Os principais deles, os conselhos gestores, são colegiados híbridos compostos por representantes do governo e de associações, confederações, movimentos organizados e outras entidades civis, que podem ter prerrogativas deliberativas ou consultivas. A Constituição previu expressamente o caráter deliberativo, ou seja, decisório, da sociedade civil em áreas como saúde, seguridade, assistência social ou direitos da criança e do adolescente. Essa característica foi estendida a outras áreas-chave e hoje os principais conselhos, como o da educação ou do meio ambiente, são deliberativos, cabendo-lhes funções como aprovar e monitorar orçamentos para a área ou elaborar planos nacionais de longo prazo. Segundo o último levantamento do Ipea, o segmento majoritário nos colegiados de 22 de 40 conselhos federais é a sociedade civil e apenas em 6 é o poder público, enquanto nos outros 12 a distribuição é paritária.

O Conad foi criado pelo Congresso em 2006 para normatizar e gerir a Política Pública sobre Drogas, e por isso previa a participação de um jurista, um médico, um psicólogo, um assistente social e outros especialistas indicados por suas corporações, como a OAB e o Conselho Federal de Medicina. Ao eliminar a participação desses protagonistas, o presidente Bolsonaro matou, se não o corpo, a alma do Conselho.

“Não podemos ficar reféns de conselhos, muitos deles com pessoas indicadas por outros governos”, afirmou Bolsonaro, revelando que entende a exigência constitucional de deliberação da sociedade como um “sequestro”. Não compreende que a participação de pessoas indicadas por outros governos é um antigo princípio da administração pública, galvanizado pela Constituição, que visa a garantir a continuidade de políticas de Estado a despeito da rotatividade dos governos.

“O decreto que assinei”, anunciou o presidente, “acaba com o viés ideológico nas discussões.” Engana-se. A rigor ele acaba com as discussões, que passam a ter um único viés, o seu e o de seus correligionários. Uma das organizações afastadas, o Conselho Federal de Psicologia, resumiu a situação: “O Conad, agora, aproxima-se mais de um grupo interministerial, em que não haverá contraponto às ações ou ideias apresentadas pelo governo”.

O presidente justificou: “Nós somos contra a liberação das drogas!”. Tem todo o direito de o ser e de indicar especialistas que o sejam, assim como de reduzir o tamanho de um colegiado para obter eficiência. Mas mutilar um órgão criado pelo Congresso como um espaço de interlocução entre Estado e sociedade civil, excluindo esta última, é, isso sim, sequestrá-lo e fazer a nação refém de seus arbítrios. Por uma ironia involuntária, Bolsonaro recorre exatamente ao mesmo estratagema que condena em seus antípodas: “A esquerda se infiltrou em nossas instituições e passou a promover sua ideologia travestida de posicionamentos técnicos”.

Blindar-se contra a sociedade civil é um mau caminho para quem se crê a encarnação da vontade do povo. Conviria ao círculo do presidente lhe dar um ou dois bons conselhos sobre o espírito cidadão da Constituição que jurou defender.