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Mudar a Receita é simplismo

Se a Receita Federal for convertida em autarquia de regime especial, o governo afastará da administração direta uma das funções vitais do Estado: arrecadar tributos

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Por Notas e Informações
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Blindar a Receita contra pressões políticas é a desculpa do governo para mexer de novo na configuração do Executivo, um exercício até agora desastrado e sem o mínimo benefício para a administração. A nova ideia é converter a Receita Federal em autarquia, com modelo semelhante ao de uma agência reguladora. Enquanto estuda a mudança, o Ministério da Economia prepara a transferência do Coaf, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras, para o Banco Central (BC). O destino do Coaf, órgão conhecido principalmente pelo combate à lavagem de dinheiro, tem estado em discussão desde o começo do mandato do presidente Jair Bolsonaro.

Se a Receita for convertida em autarquia de regime especial, semelhante à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o Brasil apresentará ao mundo uma notável inovação. Afastará do núcleo do governo, isto é, da administração direta, uma das funções vitais do Estado. Arrecadar tributos é condição essencial para o cumprimento das funções públicas. Essas funções incluem a produção da lei, a solução de conflitos, a imposição de penas a infratores, a manutenção da ordem interna e o cuidado da segurança externa, para citar só alguns pontos centrais da noção de poder público.

Não basta mencionar pressões políticas – do Judiciário, do Legislativo ou de outra fonte – para justificar essa reconfiguração do Executivo. Falta competência para enfrentar essas dificuldades? Faltou competência para garantir o bom funcionamento do Coaf? O caso deste órgão é um claro exemplo dos problemas administrativos do atual governo.

Logo depois da posse, o presidente Jair Bolsonaro tentou reduzir o número de ministérios. Agiu como se isso cortasse custos e protegesse a administração das barganhas políticas. Foi uma interpretação simplista, como tantas outras. Além disso, a eliminação de pastas forçou a redistribuição de funções, com a criação de monstrengos como o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e o Ministério da Cidadania, onde se agrupam assuntos tão díspares quanto esporte, Bolsa Família, economia criativa, política cultural e prevenção das drogas.

Ao mesmo tempo, o presidente cuidou de transferir o Coaf para o Ministério da Justiça, entregue ao ex-juiz Sergio Moro. O objetivo, segundo a desculpa oficial, era tornar mais eficiente o combate à corrupção e à lavagem de dinheiro. Mas o Coaf, anteriormente subordinado à Fazenda, havia cumprido bem essa função. A tentativa foi anulada no Congresso e o conselho retornou ao Ministério da Economia, outra criação do novo governo.

O presidente do BC declarou-se a favor da transferência do Coaf para seu território, mas nenhuma justificativa clara foi apresentada para a fusão das funções fiscalizadoras próprias do BC e as do conselho.

A mera mudança de endereço e de subordinação será insuficiente para eliminar problemas políticos e conflitos em torno da operação da Receita e do Coaf. Se de fato ocorrem os abusos denunciados até agora, certamente continuarão ocorrendo. Nem os congressistas se acomodarão nem os membros do Judiciário ou de quaisquer outros órgãos deixarão de agir, se encontrarem argumentos para denunciar excessos de autoridade, perseguições e jogadas políticas. As chefias mais altas desses órgãos poderão mudar, mas dificilmente se poderá substituir com urgência o corpo técnico.

Se o presidente Bolsonaro e sua equipe têm motivos para sentir-se incomodados, o caminho a seguir é claro: mostrar competência administrativa, cobrar respeito a regras, propor regras mais precisas e claras, se forem necessárias, e defender política e legalmente a atuação da Receita e do Coaf, quando isso for necessário.

Para isso o Executivo terá de mostrar competência administrativa e política. O presidente precisará trabalhar tendo em vista o País, em vez de prolongar o espetáculo encenado dia a dia – e já cansativo – apenas para seus apoiadores mais entusiasmados e menos críticos. Com um pouco mais de governo o Brasil poderia ter tido, por exemplo, um desempenho econômico menos miserável que o do primeiro semestre.

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