03 de dezembro de 2019 | 03h00
Guia espiritual, modelo ideológico e inspirador diplomático do presidente Jair Bolsonaro, o presidente norte-americano, Donald Trump, voltou a ameaçar o Brasil com barreiras à importação de aço e alumínio. Segundo ele, o governo brasileiro vem promovendo “maciça desvalorização” de sua moeda e prejudicando, com esse expediente, o comércio exterior dos Estados Unidos. A acusação e a ameaça valem também para a Argentina. A depreciação do real e do peso barateia produtos brasileiros e argentinos, facilitando uma competição desleal com os industriais e agricultores americanos. Essa é a essência do argumento. Teria sentido se a acusação fosse verdadeira. Mas chega a ser uma perversão acusar os governos de Brasília e de Buenos Aires pela desvalorização de suas moedas nacionais. Trata-se de evidente fenômeno de mercado, como percebe qualquer pessoa razoavelmente informada.
Indagado sobre a ameaça, num contato com a imprensa, o presidente Bolsonaro prometeu conversar com o ministro da Economia, Paulo Guedes, e, se necessário, buscar um contato com o presidente americano. “Se for o caso, ligo para o Trump”, disse Bolsonaro, acrescentando ter “canal aberto” com a Casa Branca.
Mais uma vez o presidente brasileiro misturou o relacionamento pessoal – real ou imaginário – com assuntos de governo e projetos políticos. O presidente Donald Trump está obviamente movendo peças num jogo de seu interesse – e, até certo ponto, de interesse de segmentos da produção americana. A economia dos Estados Unidos continua em crescimento, mas sinais de enfraquecimento têm sido apontados por analistas. Alguns apontam risco de recessão.
Há divergências quanto a esse risco, mas o presidente, candidato à reeleição e ainda sujeito a um processo de impeachment, tem evidente interesse em preservar o apoio de seu eleitorado, em boa parte favorável ao protecionismo, e em evitar más notícias econômicas desde a fase pré-eleitoral.
O ataque ao Brasil e à Argentina é basicamente uma ampliação do conflito comercial entre Estados Unidos e parceiros bem mais fortes e ameaçadores que qualquer país sul-americano. A China é o principal adversário. Em segundo lugar está a União Europeia.
Acusações de manipulação cambial têm sido dirigidas ao governo chinês e, de vez em quando, a autoridades alemãs, embora a Alemanha seja apenas um dos integrantes da zona do euro. É o sócio mais forte, sem dúvida, mas é uma evidente fantasia acusar o governo alemão de provocar a depreciação da moeda comum.
No caso do Brasil a fantasia colide com dados perfeitamente visíveis do dia a dia. Para conter a instabilidade, o Banco Central (BC) tem vendido grandes volumes de dólares no mercado cambial. Qualquer participante do mercado – e isso inclui muitos investidores estrangeiros – conhece muito bem esses fatos. A aparente ignorância do presidente Trump e de gente de seu governo é tão notável quanto suspeita.
Entrevistado ontem por uma tevê americana, o secretário de Comércio dos Estados Unidos, Wilbur Ross, falou sobre negociações com a China, falou em novas tarifas se falhar um acordo e depois foi questionado a respeito de Brasil e Argentina. “Nossos melhores aliados precisam também cumprir as regras”, respondeu, concentrando-se no problema do real. Então, repetiu a acusação e a ameaça de Trump. Mas é preciso respeitar regras formuladas por quem?
Nenhuma regra cambial ou comercial foi violada por autoridades brasileiras ou argentinas, exceto, talvez, alguma regra inventada por Trump. Sua ameaça é mais uma exibição de sua conhecida truculência. “Espero que Trump tenha entendimento e não nos penalize”, disse o presidente Jair Bolsonaro. “Tenho quase certeza de que ele vai nos atender.” Quase certeza, apesar de sua decantada amizade com Trump, do “canal aberto” e das superiores qualidades do presidente americano? É difícil dizer se a passividade de Bolsonaro diante de uma evidente agressão reflete seu despreparo em relação a questões de Estado, uma espantosa ingenuidade ou incompreensão do que se passa no cenário internacional. Ou será uma mistura de tudo isso?
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