Imagem ex-librisOpinião do Estadão

O BC e a mulher de César

Com o retorno da inflação, autoridade monetária não pode ignorar que independência deriva não apenas de suas ações, mas também das aparências

Exclusivo para assinantes
Por Notas&Informações
3 min de leitura

A escalada da inflação nos últimos meses e a expectativa de que os preços continuem a subir de maneira disseminada ao longo de 2022 reforçam a relevância da aprovação da autonomia do Banco Central (BC) pelo Congresso e convalidada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) neste ano. Com o índice oficial, o IPCA, acima de 10% nos 12 meses encerrados em novembro, o governo Jair Bolsonaro alcançou a marca da gestão Dilma Rousseff em 2015. Isso mostra que a estimativa do BC, de que o pico inflacionário era temporário e já teria sido atingido, era deveras otimista e apoia as previsões do mercado de continuidade no ritmo de alta dos juros, hoje em 7,75% ao ano.

Ao contrário do que afirma o presidente Jair Bolsonaro, a inflação não é resultado da política do “fique em casa” em razão da pandemia nem está associada somente a efeitos internacionais. Diante de um cenário catastrófico, com alta de preços em todos os grupos que compõem o IPCA e uma carestia há tempos não vista no País, o remédio do BC é evidentemente amargo, mas necessário para evitar consequências danosas à economia e à população carente – a mais prejudicada por uma inflação descontrolada. Atingir a meta de 3,5% no próximo ano não pode ser um objetivo abandonado, a exemplo do que o governo fez com o teto de gastos – transformado, nas palavras do ministro da Economia, Paulo Guedes, em um mero “símbolo” que não deveria ser defendido de maneira “dogmática”.

A tomada de decisão pela autoridade monetária, portanto, deve se dar de forma sóbria e técnica, longe de influências políticas, ainda que bem intencionadas ou simplesmente eleitoreiras. É nesse sentido que se faz necessário um alerta: o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, não pode agir como se fosse um membro do governo e precisa preservar o cargo que ocupa pelo bem das instituições e da economia.

Na noite em que a Câmara aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios – que abre um espaço de R$ 91,6 bilhões no Orçamento de 2022 para o pagamento do Auxílio Brasil e legaliza o calote de dívidas reconhecidas pela Justiça –, Campos Neto jantou com parlamentares da base aliada. 

Segundo relato da reportagem do Estadão/Broadcast, ele teria dito aos deputados que a PEC demarcava uma espécie de “limite” para o risco fiscal e que seria temerário propor iniciativas que resultassem em mais gastos diante do delicado quadro atual. Campos Neto teria ainda reconhecido que o texto não era o ideal e que até havia outros caminhos possíveis, mas ponderou que uma resolução para o tema era fundamental para reduzir incertezas – como se elas não tivessem sido criadas justamente pelas ações do governo.

Não é a primeira vez que o presidente do Banco Central se expõe dessa forma. Ele já participou de churrascos na casa de ministros em Brasília e de jantares em São Paulo com empresários apoiadores do governo, inclusive com a presença de Bolsonaro e de seu filho “zero três”, o deputado Eduardo Bolsonaro. Não há notícia de que seus antecessores – Ilan Goldfajn, Alexandre Tombini, Henrique Meirelles e Armínio Fraga, indicados por administrações de diferentes colorações partidárias nos últimos 20 anos e sem autonomia formal – tenham feito algo parecido.

A reação do Comitê de Política Monetária (Copom) à inflação pode ter vindo tarde, mas chegou. Embora tenha segurado a Selic em um patamar histórica e artificialmente baixo (2%) por tempo demasiado, o BC tem elevado a taxa básica de juros desde março e acelerou esse movimento nos últimos meses. No mercado, já há quem preveja uma taxa de 9,25% em dezembro.

Munido de uma autonomia que já deveria ter sido concedida há muito tempo e com mandato fixo garantido, o BC tem a obrigação de tomar decisões que assegurem a solidez da economia, mesmo que elas possam desagradar a políticos, de forma geral, e a um presidente da República em campanha para a reeleição. Não há razão para duvidar da seriedade do presidente do Banco Central, mas não se pode menosprezar o poder das aparências em se tratando de BC. Assim como no caso da mulher de César, não basta ser honesto; é preciso parecer honesto.