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O calvário peruano

Com a escolha de Francisco Sagasti, o país teve em uma semana três presidentes.

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Por Notas & Informações
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A autofagia política no Peru chegou ao paroxismo. As acusações de corrupção abundam por todos os lados e, em meio ao fogo cruzado entre o Legislativo e o Executivo, nenhum dos representantes eleitos em 2016 está de posse de seu mandato.

Sob ameaça de impeachment, supostamente por corrupção, o presidente Pedro Pablo Kuczynski renunciou em 2018. Seu sucessor, Martín Vizcarra, por sua vez, aumentou a pressão por reformas políticas alegadamente motivadas pela repressão à corrupção, chegando a ponto de dissolver o Parlamento e convocar novas eleições em 2019. Em retaliação, a nova legislatura passou a pressionar Vizcarra até conseguir o seu impeachment, no último dia 9, e a ascensão à presidência do líder oposicionista no Parlamento, Manuel Merino. Este por sua vez foi pressionado pelo povo nas ruas até cair, no domingo passado. Com a escolha do parlamentar Francisco Sagasti como presidente interino, o Peru teve em uma semana três presidentes.

A queda de Vizcarra é classificada por muitos peruanos como um golpe. A Constituição prevê a possibilidade de o Congresso depor um presidente por “incapacidade moral permanente”, mas as investigações sobre um suposto recebimento de propina por Vizcarra quando governador de Moquegua entre 2011 e 2014 ainda estão em curso. Além disso, Vizcarra tinha mais de 50% de aprovação popular e 75% dos peruanos eram contra a sua deposição.

Mas, se a legalidade do impeachment já era questionável – e está sendo questionada no Tribunal Constitucional –, quaisquer rudimentos de legitimidade do regime de Merino foram pulverizados em poucos dias.

Merino, que como presidente do Congresso promoveu diversas medidas populistas e arbitrárias, ao invés de apaziguar os ânimos, montou rapidamente um gabinete sectário e rancoroso. Uma multidão de peruanos foi às ruas. Ao mesmo tempo que o novo regime tentava deslegitimar os protestos, empenhou as forças policiais em uma truculenta repressão que deixou um rastro de mais de cem feridos, diversos desaparecidos e dois mortos. Em poucos dias o regime se mostrou totalmente insustentável e Merino renunciou. A procuradoria peruana iniciou uma investigação por delitos de homicídio doloso, abuso de autoridade, lesões graves e desaparições forçadas.

Após dois dias de convulsão parlamentar, na segunda-feira o Congresso elegeu Sagasti. Tudo indica que as forças políticas chegaram a uma solução de compromisso minimamente estável, capaz de conduzir o país à renovação nas urnas em abril. Sagasti está entre os 19 parlamentares que, contra 105, votaram contra o impeachment. Ele é engenheiro e fez carreira na vida pública como tecnocrata, servindo em vários órgãos de Estado e organismos internacionais como o Banco Mundial. Só em 2020, aos 76 anos, foi eleito parlamentar pelo partido de centro-direita Morado.

Assim como tem considerável experiência na gestão pública, Sagasti parece ser suficientemente independente das oligarquias parlamentares que foram incapazes de controlar a crise que elas mesmas produziram. Seu ex-chefe no Ministério das Relações Exteriores, Allan Wagner, o descreveu como “afável, conversador, sempre em busca de consensos e especialista em dinâmica de grupo”. Ao ser nomeado, Sagasti cuidou de adotar um tom conciliador e comprometido com o combate à pandemia e a recuperação econômica. O mercado reagiu positivamente.

Há pelo menos 20 anos as forças políticas peruanas estão em atrito permanente, sobretudo em razão de uma epidemia de corrupção, frequentemente retaliada por virulentos espasmos anticorrupção. O terremoto da última semana deitou por terra muitas partes podres do edifício institucional peruano e aprofundou suas fissuras até os alicerces. Espera-se que o novo regime consiga manter um mínimo de paz civil para que o povo peruano possa restaurar aquilo que há de mais sólido em suas estruturas e deliberar sobre uma nova arquitetura a fim de iniciar a reconstrução da sua vida política nas eleições de 2021.