Imagem ex-librisOpinião do Estadão

O dever de regulamentar a greve

Previsto na Constituição de 1988, direito de greve do funcionalismo ainda não foi regulamentado. A omissão sobrecarrega o Judiciário com tarefas que não lhe cabem

Exclusivo para assinantes
Por Notas & Informações
2 min de leitura

Quase uma década depois da propositura da ação, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento sobre a constitucionalidade do Decreto 7.777/2012, que dispõe sobre a continuidade de atividades e serviços públicos dos órgãos e entidades da administração pública federal durante greves, paralisações ou operações de retardamento. Assinado pela presidente Dilma Rousseff, o decreto estabelece que, em caso de greve, os ministros de Estado têm competência para “promover, mediante convênio, o compartilhamento da execução da atividade ou serviço com Estados, Distrito Federal ou municípios”, bem como para adotar “procedimentos simplificados necessários à manutenção ou realização da atividade ou serviço”.

Segundo o plenário do STF, o Decreto 7.777/2012 é constitucional apenas em relação às atividades e serviços públicos essenciais. Em outras situações, a medida do Executivo federal não é aplicável, uma vez que representaria um esvaziamento do direito constitucional de greve.

A conclusão desse julgamento, mais um entre tantos outros sobre o tema, recorda uma vez mais a omissão do Congresso em relação à regulamentação do direito de greve do funcionalismo público. É uma situação esdrúxula. No ano seguinte à promulgação da Constituição de 1988, o Legislativo regulamentou o direito de greve referente ao setor privado, por meio da Lei 7.783/89. No entanto, até hoje o Congresso não enfrentou o tema em relação ao setor público. Há um vácuo de normas infraconstitucionais, o que, além de privar a Constituição de sua plena eficácia, impõe ao Judiciário a tarefa de fixar os contornos do direito de greve para os funcionários públicos.

É o Congresso que deve regulamentar os direitos previstos na Constituição. Os órgãos da Justiça não dispõem dessa competência, que é de natureza essencialmente política. No entanto, sem a regulamentação legislativa, o Judiciário acaba sendo obrigado, ao julgar os casos que lhe chegam, a definir, na prática, uma regulamentação pela via judicial. Além do déficit democrático – magistrados não foram eleitos, não detendo, assim, poder político para fazer escolhas políticas –, essa situação expõe juízes, que são funcionários públicos, a uma constante pressão do corporativismo de entidades do funcionalismo público. Não é o cenário mais propício a decisões isentas e imparciais.

Em 2006, por exemplo, grevistas da Fundação de Apoio à Escola Técnica (Faetec) conseguiram, por meio de um mandado de segurança, que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro impedisse o desconto no pagamento dos dias parados. A Corte disse que o desconto do salário representava a negação do direito de greve e que, por inexistir regulamentação específica, faltaria base legal para o poder público realizar os descontos. Note-se que, na época, já havia jurisprudência do STF dizendo que, na falta de lei específica para greves no funcionalismo público, deve ser aplicada a legislação comum sobre greve.

O caso da Faetec chegou ao Supremo. Concluído apenas em 2016, o julgamento reafirmou que servidores públicos em greve devem ter os dias parados descontados de seus salários. Só poderia haver pagamento integral em caso de acordo entre as partes ou se o motivo da greve fosse o atraso do salário.

A inexistência de regulamentação do direito de greve do funcionalismo público não é motivada pela escassez de projetos de lei sobre o assunto no Congresso. Apenas entre 1999 e 2015, foram apresentados 8 projetos de lei no Senado e 15 na Câmara. São propostos, mas depois não avançam, o que evidencia a força das pressões do funcionalismo. A ausência de regulamentação é muito benéfica para as entidades de servidores públicos, proporcionando o cenário ideal para uma irrestrita judicialização, com processos que duram décadas, num contexto especialmente vulnerável a pressões corporativistas.

É mais que hora de o Congresso pôr fim a essa omissão, que tem um alto custo para toda a sociedade. Serviço público é para servir a população, não para propiciar situações de privilégio.