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O fantástico desempenho dos inativos

Gratificações a aposentados mostram a mecânica perversa do patrimonialismo

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Por Notas & Informações
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A Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo parece especialmente empenhada em agravar o dissabor crônico da população com a qualidade da representação parlamentar e dos serviços públicos. No último Natal a Casa regalou os seus 3.266 funcionários com um bônus de R$ 3,1 mil. Agora, o Estado revelou que dezenas de ex-funcionários recebem todos os meses gratificações por desempenho.

A gratificação foi criada em 2007 para, em tese, premiar os servidores mais eficientes. Um bônus por desempenho para o funcionalismo já é em si questionável, considerando que o serviço público não gera lucro, arrecada de quem o gera, a iniciativa privada, além de não estar submetido às flutuações do mercado, com a garantia de estabilidade e de reajustes progressivos. Para piorar, como se tornou a regra para as gratificações por desempenho, a distribuição não foi condicionada a avaliações ou índices de produtividade. Todos os meses as lideranças partidárias decidem quanto e a quem querem distribuir os bônus.

Naquele mesmo ano uma súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal determinou que, não havendo avaliações de desempenho, as gratificações equivalem a um aumento salarial. Mas, ao invés de invalidar esta deturpação, a Corte abriu um precedente para que os aposentados também recebessem o mesmo incremento, com base no princípio da paridade entre ativos e inativos. A partir de 2014, o Tribunal de Justiça de São Paulo passou a negar gratificação aos aposentados, uma vez que ela não era dada a todos os servidores, só aos agraciados pelas lideranças parlamentares. Mas aqueles que já haviam consolidado seus “direitos adquiridos” seguem recebendo.

Trata-se de um exemplo acabado, em microescala, da mecânica do patrimonialismo, que perverte sistematicamente os mais elementares princípios da administração pública, como a isonomia e a equidade, em favor da ganância corporativa. O processo é sempre o mesmo: uma determinada corporação incorpora algum benefício, através do lobby mais poderoso nas instâncias parlamentares dos três níveis da administração pública. Logo as outras corporações acionam a Justiça exigindo “direitos” iguais. A magistratura, ela mesma campeã de acumulação de benesses, ao invés de eliminar o privilégio, estende-o, com base numa interpretação espúria do princípio da paridade, a todas as demais corporações.

Segundo o Ministério da Economia, das 179 gratificações criadas para o setor público, 105 vão para os aposentados. Em 87% das carreiras com gratificações por desempenho, pelo menos 90% dos servidores as recebem. Ademais, a progressão de carreira em geral é rápida e irrestrita. Ou seja, estes mecanismos não têm qualquer relação com desempenho. 

Em 15 anos o número de servidores cresceu 34% e sua remuneração aumentou em média 53%. Dois terços dos servidores estão entre os 10% mais ricos do País. A crise que levou ao recorde de mais de 12 milhões de desempregados – em parte causada pelo rombo fiscal do funcionalismo – não afetou em nada os mais 12 milhões de servidores. Entre 2013 e 2018, enquanto a massa salarial no setor privado encolheu 0,7%, a dos agentes públicos cresceu 12%. As perversões sistêmicas do funcionalismo, em que pese a probidade pessoal de boa parte, plausivelmente a maioria dos servidores, transformam o Estado numa máquina de produzir ineficiência, concentração de renda e insustentabilidade fiscal.

Os contribuintes (incluindo os próprios servidores) têm direito a um serviço público prestado com eficiência equiparável à do mercado. Os trabalhadores privados têm direito a uma remuneração equiparável à dos trabalhadores do poder público. E os servidores públicos da base têm direito a uma melhor distribuição dos recursos concentrados no topo. Sem uma reforma administrativa radical, esses direitos não poderão ser adquiridos.