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O futuro da Argentina

Quem governará a Argentina: o presidente eleito ou sua vice? Sanar esta dúvida é o primeiro desafio de Alberto Fernández

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Por Notas & Informações
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Um peronista assumido voltará à Casa Rosada, num ciclo que se repete há mais de 50 anos. O advogado Alberto Fernández foi eleito presidente da Argentina no primeiro turno com 48,1% dos votos. O presidente Mauricio Macri, que concorria à reeleição, recebeu 40,4% dos votos no pleito de domingo passado.

A vitória de Fernández era previsível. A chapa encabeçada pelo peronista - com a ex-presidente Cristina Kirchner como vice - obteve 47,4% dos votos nas prévias realizadas em agosto - 15,1% a mais do que os votos dados à chapa do atual presidente naquela ocasião. De acordo com a legislação eleitoral argentina, um candidato a cargo executivo é eleito no primeiro turno quando obtém 45% dos votos ou uma votação acima de 40%, desde que, neste caso, a diferença em relação ao segundo colocado seja de, no mínimo, 10 pontos porcentuais.

Imprevisível é o futuro da Argentina sob a presidência de Alberto Fernández. A composição vitoriosa entre os peronistas e os kirchneristas - em essência, um só grupo - foi um curioso caso em que a vice foi quem escolheu o cabeça de sua chapa. Do ponto de vista estritamente eleitoral, foi uma jogada de mestre. Cristina Kirchner, como é sobejamente sabido, tem pesadas contas a prestar à Justiça de seu país, que vão de suspeitas de corrupção e lavagem de dinheiro à participação no assassinato do procurador Alberto Nisman, em 2015. Ter seu nome à frente da chapa poderia repelir votos decisivos numa eleição tão polarizada.

É fato que o presidente eleito, tendo servido aos governos de Néstor e Cristina Kirchner, deu mostras de independência política em relação ao casal, deixando de apoiá-los quando as divergências entre eles se tornaram incontornáveis. É forçoso reconhecer, no entanto, que a vitória de alguém como Fernández - o primeiro presidente da Argentina eleito sem antes ter sido deputado, prefeito ou governador - é devida, em grande medida, ao apelo eleitoral do kirchnerismo em expressivos segmentos da sociedade, não obstante a ruína legada ao país pelo desbragado populismo dos Kirchners. Vender ilusões é da essência do populismo.

Alberto Fernández é tido como um peronista “moderado” e “pragmático”. Só o tempo dirá se a moderação e o pragmatismo atribuídos ao presidente eleito irão se impor à agenda regressiva de Cristina Kirchner. Em outras palavras, hoje o mundo há de perguntar quem governará a Argentina: o presidente eleito ou sua vice? Sanar esta dúvida é o primeiro desafio de Alberto Fernández.

Há outros. O presidente eleito assumirá um país alquebrado em função de uma perversa crise econômica. A inflação anual na Argentina é de 53,5%, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI). Cerca de 36% dos argentinos vivem abaixo da linha da pobreza. Se a origem dessa crise está na irresponsabilidade do governo de Cristina Kirchner (2007-2015), seu agravamento é devido à incapacidade do presidente Mauricio Macri de propor medidas saneadoras. Com Macri, a Argentina teve de recorrer novamente à ajuda financeira do FMI, que impôs em contrapartida medidas de austeridade que contribuíram ainda mais para o desgaste do atual presidente.

Ainda assim, o presidente Mauricio Macri conseguiu recuperar um bom porcentual de votos nos três meses entre as prévias e a eleição, o que indica uma clara divisão da sociedade. É difícil que Fernández consiga unir o país em torno de seu governo. Outro desafio que tem diante de si é o de ao menos diminuir o grau de polarização do país em torno de uma agenda nacional.

A eleição na Argentina impõe igualmente desafios ao Brasil. Cabe ao presidente Jair Bolsonaro apor os interesses do País às suas preferências de ordem política e ideológica. Bolsonaro apoiou a reeleição de Mauricio Macri e já se pôs a dar declarações desairosas em relação a Alberto Fernández. Mas os interesses dos dois países, é bom reforçar, estão umbilicalmente ligados na América Latina. A relação entre Brasil e Argentina, os maiores parceiros regionais, caminhará seja qual for o tratamento que os chefes de Estado e de governo dispensem um ao outro. Melhor que sejam relações republicanas.