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O futuro da Comissão de Justiça

Tentativa de convertê-la num feudo bolsonarista é avanço da democracia iliberal no Brasil.

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Por Notas & Informações
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Na entrevista que concedeu ao Estado, anunciando o que fará caso seja eleita para comandar a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), a principal, da Câmara, a deputada Bia Kicis (PSL-DF) deixou claro que não tem a menor condição de exercer o cargo. 

Entre outras iniciativas, afirmou que desengavetará um projeto apresentado pela bancada evangélica, incluindo na lista de crimes de responsabilidade a “usurpação de competência do Congresso por parte dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF)”. A proposta está parada na CCJ desde 2016 e é defendida pelo presidente Jair Bolsonaro. Como vem sendo investigada sob suspeita de ter usado dinheiro público para divulgar mensagens em favor do fechamento do STF, Bia Kicis carece de autoridade moral para tomar essa iniciativa. 

Além disso, ela quer reduzir de 75 para 70 anos o limite para a aposentadoria compulsória dos membros do STF, o que permitiria a Bolsonaro indicar ministros alinhados com o que chama de sua “agenda”. É uma forma nada sutil de liberar vagas para que Bolsonaro aparelhe a principal Corte do País. “Quero um STF que funcione cumprindo seu papel constitucional. Não o quero interferindo nas minhas funções de parlamentar”, disse ela, mal escondendo seu desejo de ter uma corte servil à vontade do Planalto. Contudo, isso é evidenciado pelo modo como critica as interpretações que o STF faz da Constituição. Como a Carta contém muitos dispositivos com conceitos abertos, quando os ministros os interpretam de uma forma que não atende aos interesses de Bolsonaro, eles são classificados como “ativistas” por Kicis. Mais grave, quando atuaram como relatores em processos de interesse do presidente, apresentando pareceres contrários aos seus interesses, os ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes foram objeto de um pedido de impeachment encaminhado por Kicis. Foi por esses motivos que alguns ministros do STF não esconderam seu descontentamento com uma eventual ascensão de Kicis à presidência da CCJ. Segundo eles, por avaliar a legalidade e constitucionalidade de projetos, decretos, leis, MPs e PECs, a CCJ ficaria desmoralizada sob seu comando. 

Independentemente das críticas do STF e de partidos com representação na Câmara, a desenvoltura como Kicis e outros parlamentares bolsonaristas vêm agindo no Congresso entreabre o risco de o País se converter na chamada democracia iliberal. Historicamente, ela surge quando a economia entra em estagnação ou eclodem crises inesperadas, como a de saúde pública. As consequências são, de um lado, o aumento de insegurança jurídica e de concepções regressivas de ordem pública. E, de outro, a ascensão de um populismo autoritário que não esconde o desapreço pelas liberdades públicas, menospreza a pluralidade social, ignora os direitos das minorias e desqualifica o diálogo como meio de resolução de divergências. 

A democracia iliberal é um regime no qual regras e procedimentos democráticos tendem a ser utilizados por populistas autoritários com o objetivo de reduzir as mediações institucionais e minar garantias fundamentais. É um regime manipulado por governantes que não hesitam em corroer as regras democráticas com base nas quais se elegeram. Por um lado, recorrem a instrumentos da democracia liberal em busca de uma tinta de legitimidade. Mas, por outro, testam os limites de liberdade que a Constituição assegura, promovendo um esvaziamento progressivo dos mecanismos de controle do Estado de Direito, aparelhando com gente medíocre e subserviente organismos policiais e de inteligência financeira, além do Ministério Público e do Judiciário. 

Desde que ascendeu ao poder, Bolsonaro teve muitas das suas iniciativas questionadas no STF, que aplicou as leis de modo isento. Neste período em que a judicialização da vida política faz com que o jogo democrático dependa cada vez mais das posições do Judiciário, a tentativa de converter a deputada Bia Kicis em presidente da CCJ nada mais é do que um avanço para aprofundar a democracia iliberal, desta vez com a intenção de interferir na produção das leis que os tribunais terão de aplicar.