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O incêndio na Cinemateca

Uma tragédia prevista, desde que o governo Bolsonaro fechou o Ministério da Cultura

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Por Notas & Informações
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Depois das confusões com o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e do apagão nos sistemas de informática do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), agora foi o incêndio num depósito da Cinemateca Brasileira, na zona oeste de São Paulo. Esse é o preço que o País está pagando pelo reiterado desprezo do governo do presidente Jair Bolsonaro pelas áreas de educação, ciência e cultura.

Temia-se esse incêndio, dada a maneira irresponsável e inconsequente com que o governo Bolsonaro trata a área cultural desde o seu início. Em seus primeiros meses de gestão ele extinguiu o Ministério da Cultura. Transferiu os órgãos que o integravam – inclusive a Secretaria Nacional do Audiovisual, à qual a Cinemateca Brasileira está subordinada – para o Ministério do Turismo, que nada tem a ver com atividades culturais. E ainda reduziu o orçamento da área. Depois, indicou pessoas sem formação técnica para geri-las. E, por fim, ignorando a importância do setor audiovisual para a preservação da memória e do patrimônio cultural do Brasil, não renovou o contrato de gestão da Cinemateca Brasileira que o extinto Ministério da Cultura mantinha com a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp).

Com isso, a partir do segundo semestre de 2019, os funcionários da Cinemateca responsáveis pelo acervo histórico de mais de 2 mil filmes e de 113 mil DVDs, além de arquivos impressos, foram demitidos. O pagamento das contas de água e energia elétrica foi sendo atrasado. E as prestadoras de serviços de manutenção e de segurança ficaram sem receber. O abandono da instituição, que é a mais antiga da América Latina na área de cinema, suscitou críticas da comunidade internacional – a ponto de o diretor do Festival de Cannes, Thierry Frémaux, ter afirmado no ano passado que a Cinemateca estava “ameaçada pelo governo Bolsonaro”.

Dois meses antes dessa crítica, o Ministério Público Federal já havia ajuizado uma ação civil contra a União, ante os impasses em torno da gestão da Cinemateca. Em abril de 2021, ex-funcionários publicaram um manifesto no qual afirmaram que “o risco de um incêndio é real e o acompanhamento técnico e ações de preservação, inclusive procedimento em laboratórios, são vitais”. Em maio, a Justiça Federal estabeleceu um prazo para que os responsáveis pela área cultural do governo promovessem uma vistoria técnica na Cinemateca e tomassem as medidas necessárias para afastar risco de incêndio e preservar seus bens. 

A desorganização da área cultural do governo é tão grande que, depois do incêndio, que começou no ar-condicionado de uma sala, as autoridades do setor constataram que não dispõem nem mesmo de técnicos especializados capazes de fazer a avaliação dos danos e perdas causados pelas chamas. O pouco que se sabe até agora é que foram consumidos filmes de 35 mm e 16 mm, feitos de material inflamável. Eles seriam cópias para exibição e não rolos originais, que estão guardados em outro local. Também não se sabe se o incêndio atingiu o laboratório de impressão fotográfica digital, os acervos de filmes de Glauber Rocha e da Programadora Brasil, projetores antigos e quatro toneladas de arquivos sobre políticas públicas, trazidas recentemente do Rio de Janeiro. 

“Não foi uma fatalidade. Perdemos 60 anos de história”, disse o cineasta Carlos Augusto Kalil, presidente da Sociedade Amigos da Cinemateca. “Nossa memória está sendo apagada e isso é um projeto do atual governo, que quer desfazer a indústria cultural”, afirmou a cineasta Laís Bodansky. “Isto está acontecendo por causa de um governo que pensa que a terra é plana”, declarou a filha de Glauber Rocha, Paloma Rocha. “Foi um crime”, resumiu o cineasta Walter Salles Jr. 

São críticas contundentes, mas procedentes, uma vez que a visão da ciência e da arte como ameaça aos valores tradicionais sempre foi uma das marcas de um governo que prioriza a guerra cultural, em detrimento de políticas públicas eficazes.