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O maior desafio

Profissionais de saúde arriscam a vida nesta crise; demais cidadãos têm de ficar em casa

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Por Notas & Informações
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Com o contágio do coronavírus no Brasil encaminhando-se para o seu pico, os profissionais de saúde – gestores, pesquisadores, técnicos e, sobretudo, enfermeiros e médicos – encontram-se face a face com aquele que provavelmente será o maior desafio de suas vidas. Os episódios de sacrifício, heroísmo, tragédia, solidariedade e superação relatados por seus colegas que sobreviveram à catástrofe, como na China, ou que estão em plena voragem, como na Itália, mostram que o batido bordão “sangue, suor e lágrimas” está para ser transferido da cena marcial para a sanitária.

Na China muitos médicos morreram, inclusive o diretor do hospital de Wuhan e seu colega Liu Zhiming, que foi perseguido pelo Partido Comunista por “espalhar rumores” sobre um vírus inaudito. Na Itália já morreram 17 médicos e mais de 2.600 foram infectados. O sistema “luta para oferecer serviços regulares, inclusive cuidados com gestantes e parturientes, enquanto os cemitérios são sobrecarregados”, disse um grupo de médicos de Bergamo em artigo no New England Journal of Medicine (NEJM). “Pacientes idosos não estão sendo ressuscitados e morrem sós sem cuidados paliativos, enquanto as famílias são notificadas por telefone, frequentemente por um médico bem-intencionado, exausto e emocionalmente arrasado, que nunca viram antes.” 

Numa pressão sobre o sistema de saúde sem precedentes desde a 2.ª Guerra, vários hospitais italianos se tornaram fontes de infecção, muitas vezes pelo colapso no suprimento de material de proteção. Ambulâncias e equipes infectadas contagiaram colegas e pacientes. Os médicos italianos alertam para a importância de descentralizar o atendimento: “Cuidados em casa e clínicas móveis evitam movimentos desnecessários e diminuem a pressão sobre os hospitais”. Os horrores da Itália podem se abater sobre o Brasil se população e autoridades não cooperarem aguerridamente com os combatentes no front.

O maior risco está no exaurimento de materiais protetores, leitos e respiradores. Luvas e máscaras podem ser produzidas com razoável velocidade, mas a distribuição precisa ser muito bem organizada. A Itália tem cerca de 12 leitos de UTI por 100 mil habitantes. Mas algumas cidades precisaram aumentar a oferta em 50%. Segundo estudo da FGV, o Brasil tem um número razoável de leitos: 15,6 por 100 mil habitantes. A distribuição social e regional, contudo, é desigual. A média do SUS é de 7,1 leitos. Em 72% das regiões, a oferta do SUS é inferior à mínima necessária em períodos típicos. O estudo calcula que num cenário-base de 20% da população infectada, com 5% de casos graves, 294 das 436 regiões de saúde do País ultrapassariam a taxa de ocupação de 100%. A oferta de respiradores segue um padrão similar. Em poucas palavras, não é impossível que, como na Itália, os médicos tenham que escolher quem será abandonado à morte. 

Um estudo publicado no NEJM sobre critérios na alocação de recursos escassos em pandemias identifica quatro valores fundamentais: 1) maximizar os benefícios, salvando o máximo de vidas ou o máximo de anos de vida, priorizando os pacientes que viverão mais; 2) tratar as pessoas igualmente, atendendo os primeiros que aparecerem ou promovendo um “sorteio”; 3) promover o valor instrumental, priorizando aqueles que podem salvar outros; e 4) priorizar aqueles em pior situação, os mais doentes ou os mais jovens, que terão vivido menos se morrerem sem tratamento.

Para evitar ou minimizar escolhas como essas é crucial “achatar a curva” do contágio. O devastador desta epidemia não é tanto a taxa de letalidade, comparativamente baixa, nem mesmo a alta taxa de contágio, mas a sua velocidade. Daí a importância de um choque de contenção para evitar uma hospitalização massiva ao mesmo tempo. Enquanto os profissionais de saúde arriscam suas vidas, é preciso que os demais cidadãos, conforme a expressão de um jornalista português que viralizou na internet, “tenham noção”: “Aos vossos avós foi-lhes pedido para irem à guerra, a vocês pedem-vos para ficar no sofá”. É esse o nosso desejo.