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O recado da Câmara

Se quiser aprovar projetos, Bolsonaro terá de construir uma base com mínimo de solidez

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Por Notas & Informações
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Foi dolorido. Por impressionantes 367 votos a favor e apenas 57 contra, com três abstenções, a Câmara dos Deputados impôs a primeira grande derrota ao governo de Jair Bolsonaro, aprovando requerimento de urgência para a votação de projeto que revoga o decreto que ampliou para funcionários comissionados e de segundo escalão o poder de impor sigilo de documentos públicos. O projeto, derrubando o decreto, acabou aprovado em seguida, em votação simbólica.

Considerando-se a crise do País e as verdadeiras prioridades neste momento, o decreto derrubado na Câmara tinha importância apenas relativa. É certo que a tentativa de ampliar a possibilidade de tornar sigilosos documentos públicos constituía grave retrocesso democrático, na medida em que permitiria até a funcionários públicos subalternos determinar que certos papéis fossem classificados como inacessíveis aos cidadãos. Para um presidente que foi eleito prometendo total transparência na administração pública, como Jair Bolsonaro, tratava-se de espantosa traição a seus compromissos de campanha - mas compatível, no entanto, com seu perfil autoritário e com sua declarada simpatia a regimes ditatoriais. 

Em boa hora a Câmara derrubou esse decreto antidemocrático, servindo a votação não apenas para restaurar os padrões de acesso a documentos públicos, mas principalmente para mandar um recado ao governo: se quiser aprovar os projetos realmente importantes para o País, o presidente Jair Bolsonaro terá de se esforçar um pouco mais para construir uma base congressual com um mínimo de solidez. 

Hoje, nem mesmo seu partido, o PSL, lhe garante os votos de sua meia centena de parlamentares, o que é uma perspectiva bastante sombria, considerando-se que emendas constitucionais - como a reforma da Previdência - só passam na Câmara se tiverem no mínimo 308 votos. O próprio presidente do PSL, deputado Luciano Bivar, votou contra o governo no caso do decreto sobre o sigilo de documentos - a assessoria do parlamentar disse que ele “se confundiu”.

O fato incontestável é que o governo descuidou de sua relação com o Congresso. Isso nada tem a ver, que fique bem claro, com a acertada decisão de Jair Bolsonaro de não formar seu Ministério com base nas famigeradas indicações de caciques políticos, e sim conforme seus próprios critérios de governança. Se vier mesmo a se confirmar, o fim do presidencialismo de coalizão, baseado num relacionamento promíscuo e corrupto entre Executivo e Legislativo, será um grande avanço na vida política nacional. Mas os dissabores do governo no Congresso têm outra natureza: a escancarada inaptidão do presidente Bolsonaro para assentar bases políticas sólidas.

Aparentemente, o presidente Bolsonaro ainda não compreendeu que precisa constituir uma equipe de articuladores políticos experientes o bastante para lidar com o Congresso, num momento em que são esperadas difíceis negociações para aprovar os projetos do governo - em especial a reforma da Previdência. Ao escolher parlamentares novatos ou oriundos do baixo clero para essa difícil tarefa, Bolsonaro demonstrou descaso em relação ao Congresso. E isso tem consequências, como prova a clamorosa derrota na votação sobre o sigilo de documentos.

O presidente Bolsonaro parece acreditar que foi eleito por poderes divinos, não podendo o Congresso contrariar aquilo que os ungidos encaminham para sua apreciação. Por enquanto, alguns parlamentares em posições estratégicas, como os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, estão dispostos a assumir, eles mesmos, a tarefa de negociar as reformas com seus pares. Nesse estranho parlamentarismo, em que o presidente se põe acima de tudo e de todos, o País passa a depender dos interesses e dos humores de um punhado de deputados e senadores que, por enquanto, resolveram abraçar a agenda das reformas. Vamos torcer para que eles continuem assim, porque, se depender de Jair Bolsonaro, prevalecerá o espírito olímpico: o importante é competir, não é ganhar.