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O secretário otimista e a âncora inexistente

O Orçamento foi privatizado e o teto está em frangalhos, mas o novo gestor do Tesouro fala em ancoragem de expectativas

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Por Notas&Informações
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Já furado, recalculado e tratado como problema pelo ministro da Economia e pelo presidente da República, o teto de gastos voltou a ser defendido em Brasília, desta vez pelo novo secretário do Tesouro, Paulo Valle. “O fato é que o teto de gastos não acabou, não morreu”, disse o secretário em entrevista ao Estado. Aprovado o Orçamento e garantida a PEC dos Precatórios, há espaço, acrescentou, “para ancorar as expectativas”. Falta mostrar onde está esse espaço. Expectativas são ancoradas – em relação às contas públicas, à inflação e ao câmbio, para ficar em exemplos muito conhecidos – quando há confiança nas autoridades, as políticas são claras e mudanças de rumo são consideradas pouco prováveis. A fraqueza da Bolsa e a instabilidade cambial, com o dólar oscilando neste fim de ano entre R$ 5,60 e R$ 5,70, sugerem um quadro muito menos tranquilo.

O teto de gastos é “mortal”, disse o presidente na sexta-feira passada, véspera do Natal, ao comentar as limitações impostas pelas normas orçamentárias. “A questão do teto: realmente eu sei que é equilíbrio de contas, um montão de coisa aí, mas é mortal. A questão do servidor: você vê, o Orçamento está aí. Ninguém pode prometer nada, se não está no Orçamento”, comentou Bolsonaro, em seu linguajar característico, deixando transparecer um evidente desconforto em relação às normas fiscais.

Apesar desse desconforto, ele conseguiu transmitir aos políticos e a seus auxiliares a decisão de conceder aumentos às Polícias Federal, Rodoviária e Penal. “Foi uma decisão política”, explicou o secretário do Tesouro, ressalvando, no entanto, a “linha do Ministério da Economia”, favorável a “mais um ano sem reajuste salarial”. Mas a “linha do Ministério” pouco ou nada significa para o presidente, quando ele decide gastar ou conceder algum benefício em busca de alguma vantagem político-eleitoral. Quando isso ocorre, cabe ao ministro e à sua equipe adaptar o Orçamento às conveniências presidenciais. A solução será remanejar ou negociar o remanejamento de gastos.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, até se permite manifestar desconforto, quando o presidente Jair Bolsonaro anuncia alguma decisão incompatível com a programação das finanças públicas. Mas nenhuma objeção produzirá efeito, se o presidente estiver empenhado em seguir sua inclinação. Tem sido assim desde o início do mandato presidencial, em 2019, e nada permite imaginar algo diferente a partir de agora. Ao contrário: com a intensificação do jogo eleitoral, os interesses presidenciais deverão moldar mais amplamente o funcionamento de cada setor do Executivo.

A tal ancoragem das expectativas ficará ainda mais dependente, portanto, dos objetivos pessoais do presidente e de suas ações na busca de votos. Já é estranho falar de expectativas ancoradas quando o Executivo recorre a truques para ampliar suas possibilidades de gastos.

Um desses truques é um calote. Esta é uma palavra perfeita para designar o reescalonamento dos precatórios, dívidas sacramentadas por decisão judicial. Depois de esperar durante anos o reconhecimento de seus direitos, credores do Tesouro ainda terão de suportar o atraso dos pagamentos. Outra jogada oportunista foi a alteração do critério de fixação do teto. A referência original era a inflação dos 12 meses até junho do ano de elaboração do Orçamento. Pelo novo critério, a referência é o ano-calendário anterior ao da vigência orçamentária. Com a inflação crescente, a mudança de critério produziu um teto mais alto.

Essas jogadas serviram para subordinar o Orçamento, formalmente, às conveniências do Executivo. Mas o escândalo continuou, com a apropriação de verbas pelo presidente e por parlamentares beneficiados pelo orçamento secreto. Assim se privatizaram bilhões de reais, distribuídos de forma opaca, em evidente violação dos princípios de publicidade e de respeito ao dinheiro público. Mas o secretário do Tesouro fala de uma possível ancoragem de expectativas, como se isso fosse possível com esse presidente e seus aliados.