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O Senado cumpre seu papel

Senado fez muito bem ao derrubar os decretos sobre posse e porte de armas no País

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Por Notas & Informações
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O Senado fez muito bem ao derrubar os dois decretos do presidente Jair Bolsonaro que ampliavam as possibilidades de posse e porte de armas no País. Se o presidente quer mesmo alterar o Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003) para permitir que mais brasileiros tenham acesso a armas, conforme prometeu em sua campanha eleitoral, então que o faça pela via correta, isto é, por meio de um projeto de lei. O presidente da República não pode mudar uma lei por decreto, por razões que deveriam ser óbvias – trata-se de decisão arbitrária a alterar o que foi votado democraticamente no Congresso, o que só acontece em regimes de exceção.

Ademais, os decretos estavam eivados de inconstitucionalidades. A Consultoria Legislativa do Senado contou nada menos que nove delas – e isso em um texto que já havia sido modificado pelo governo porque, em sua versão original, também estava carregado de erros e problemas legais.

Portanto, o Senado cumpriu seu papel, e o fez por meio de votação expressiva – o placar foi de 47 votos a 28 – mesmo diante do empenho pessoal de Jair Bolsonaro. O presidente deixou de lado sua costumeira atitude olímpica em relação ao Congresso e telefonou para vários senadores para pedir votos. A pressão incluiu entrevistas a programas populares na TV, discursos e apelos nas redes sociais, como se da aprovação dos decretos dependesse o futuro do País.

Foi esse o tom que Bolsonaro usou num discurso às vésperas da votação no Senado. Em Santa Maria (RS), o presidente declarou que “a nossa vida tem valor, mas tem algo muito mais valoroso que nossa vida, que é nossa liberdade”, razão pela qual era preciso permitir “armamento individual para o nosso povo” para que “tentações não passem na cabeça de governantes para assumir o poder de forma absoluta”.

Traduzindo: para o presidente, a população deveria se armar não só para sua integridade pessoal, mas para lutar pela sua liberdade contra algum candidato a ditador. E ele acrescentou: “Temos exemplos na América Latina e não queremos repeti-los e, confiando no povo e nas suas Forças Armadas, esse mal cada vez mais se afasta de nós”. Mais tarde, deixou claro que se referia à Venezuela: “Toda boa ditadura é precedida do desarmamento. Você vê: o povo venezuelano não tem como reagir. Se tivesse, não estaria acontecendo tudo isso que está acontecendo lá”.

Trata-se de um discurso imprudente, que dá margem a supor que o presidente talvez esteja interessado não na segurança pública, mas em armar milícias para defender seu governo daqueles que ele julga serem os “inimigos do povo”.

O flerte dos bolsonaristas com a exceção não se limitou a esse desvario. A veemência do presidente na defesa do armamento da população foi a senha para que seus seguidores nas redes sociais pressionassem os senadores de forma virulenta, o que incluiu ameaças de morte. “No meu celular mandaram ameaças, dizendo que, se eu não tinha carro blindado, deveria ter”, relatou a senadora Rose de Freitas (Pode-ES). O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), chegou a anunciar que mandaria reforçar a segurança dos parlamentares.

A situação começa a entrar em terreno perigoso para a democracia. E Bolsonaro parece colaborar para anuviar o ambiente. “Precisamos, mais que do Parlamento, do povo ao nosso lado para que possamos impor uma política que reflita em paz e alegria para todos nós”, discursou, sem deixar dúvida sobre sua incapacidade de enxergar a legitimidade democrática do Congresso – que, assim como Bolsonaro, também foi escolhido pelo povo.

Felizmente, o Congresso parece ter entendido seu papel e, no caso dos decretos sobre armas, não se intimidou diante da fúria bolsonarista nas redes sociais, incitada por um presidente que parece desconhecer o funcionamento do regime democrático. Sempre que Bolsonaro tentar “impor uma política” por julgar que tem “o povo ao nosso lado”, como ele próprio discursou, os parlamentares devem lembrá-lo de que isso só é possível em ditaduras.