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O valor da palavra de Bolsonaro

Ele conseguiu o que queria ao transformar um tema inexistente, a dúvida sobre as urnas eletrônicas, num assunto candente.

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Por Notas & Informações
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O presidente da Câmara, Arthur Lira, havia dito e assegurado que o presidente Jair Bolsonaro aceitaria o resultado da votação da PEC do Voto Impresso na Câmara. “O presidente Bolsonaro, em uma ligação telefônica, me garantiu que respeitaria o resultado do plenário. Eu espero respeito e obediência ao que o plenário da Câmara decidir”, declarou Lira à Rádio CBN às vésperas da votação. Logo depois da sessão, proclamado o resultado e arquivada a PEC, Arthur Lira reafirmou que o presidente “disse que respeitaria o resultado” e acrescentou: “Eu acredito”.

Na palavra de um presidente que mente a todo momento, sobre os mais diversos assuntos, acredita quem quer. No dia seguinte à esperada derrota da PEC do Voto Impresso na Câmara, Bolsonaro disse que os deputados que votaram contra a matéria foram “chantageados”, manteve sua campanha de ataques à Justiça Eleitoral e de descrédito contra o atual sistema de votação e informou que não vai desistir do assunto.

O presidente disse que a matéria foi rejeitada porque muitos parlamentares temiam ser “retaliados”. Às vésperas da votação, Bolsonaro havia acusado o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Luís Roberto Barroso, de ter “apavorado” deputados que, segundo ele, “devem alguma coisa na Justiça, devem no Supremo Tribunal Federal”.

Ou seja, Bolsonaro, não contente em reiterar suas agressões ao Judiciário, sugerindo que o ministro Barroso agiu como um capo mafioso, ainda colocou em dúvida a honestidade dos deputados de quem esperava votos.

De fato, muitos deputados foram chantageados e ameaçados, mas por bolsonaristas que vivem no esgoto das redes sociais. Além disso, Bolsonaro ainda fez veículos blindados da Marinha desfilarem nos arredores do Congresso no dia da votação, com a clara intenção de intimidar os parlamentares.

Derrotado, Bolsonaro inventou a tese segundo a qual os 229 votos em apoio à PEC significam que “metade do Parlamento que votou ‘sim’ ontem quer eleições limpas”, o que, segundo ele, mostra que “a maioria da população está conosco, está com a verdade”.

Nada disso parece indicar que Bolsonaro aceitou o resultado, como o presidente da Câmara garantiu que o presidente faria. Indica, ao contrário, que a campanha bolsonarista para tumultuar as eleições do ano que vem continuará a todo vapor – campanha para a qual conta com a pusilanimidade dos que têm poder institucional de lhe obstar o caminho.

Na verdade, mesmo derrotado na Câmara, Bolsonaro conseguiu o que queria, ao transformar um tema inexistente – dúvidas sobre a já atestada segurança das urnas eletrônicas – no tema mais candente do ano, superando a pandemia, a inflação e o desemprego. Num país em que a democracia jamais esteve verdadeiramente em questão desde o fim do regime militar, Bolsonaro instilou o receio de quebra da ordem democrática, e, diante disso, tudo o mais parece perder importância.

O circo bolsonarista, com direito a tanques nas ruas, já mostrou do que é capaz para desviar a atenção da profunda incompetência do governo. Para piorar, conta com a mediocridade da oposição. Na votação da PEC do Voto Impresso, o PSDB, que se anuncia como partido de oposição, deu mais votos a favor da matéria do que o PP do senador Ciro Nogueira, prócer do Centrão alçado à Casa Civil de Bolsonaro com a promessa de articular apoio ao presidente.

É nessa miséria política que medra o bolsonarismo, cuja essência é justamente a negação do diálogo e da democracia. E ninguém pode se dizer surpreso: Bolsonaro sempre foi absolutamente transparente a respeito de seus propósitos liberticidas. Quem quer que se deixe engambelar por suas promessas de contenção e respeito à Constituição, como fizeram Arthur Lira e outros antes dele, deve saber que tamanha ingenuidade custa cada vez mais caro ao País.

O senador Flávio Bolsonaro, primogênito do presidente, garante que o pai é um “democrata”: “Bolsonaro não é Hugo Chávez, Bolsonaro não é Kim Jong-un, Bolsonaro não é Fidel Castro”. De fato, Bolsonaro é apenas Bolsonaro – e isso basta para arruinar o País.