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O vírus como desculpa

Ao manter a suspensão das sessões presenciais, supostamente para preservar a saúde dos parlamentares, Lira facilita a vida dos deputados em campanha

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Por Notas & Informações
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O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), suspendeu por tempo indeterminado o retorno das sessões presenciais na Casa. A decisão foi publicada em edição extraordinária do Diário da Câmara no sábado passado. Lira justificou a manutenção das votações remotas (realizadas por meio de um aplicativo instalado nos celulares dos deputados) pela necessidade de “diminuir a circulação das pessoas nas dependências desta Casa Legislativa, preservando a saúde não só dos parlamentares, mas também de servidores e colaboradores, considerando os efeitos da pandemia de covid-19”.

A essa altura, a suspensão sine die do trabalho presencial na Câmara pode se prestar a tudo, menos a resguardar, de fato, a saúde dos parlamentares, servidores e colaboradores, como o presidente Arthur Lira quer fazer crer. Em primeiro lugar, porque a pandemia de covid-19 dá evidentes – e muito bem-vindos – sinais de arrefecimento à medida que avança a vacinação dos brasileiros. Mais de 70% da população já completou o ciclo vacinal de duas doses ou dose única. Cerca de 34 milhões de brasileiros já tomaram a terceira dose, a chamada dose de reforço. Ademais, convém lembrar que, por ordem do próprio Lira, é obrigatória a apresentação do comprovante de vacinação por todos os que acessam as dependências da Câmara.

O resultado direto da imunização em massa da população é a queda consistente do número de casos e mortes decorrentes da covid-19 observada nas últimas semanas. O quadro é tão promissor que grandes cidades do País, como Rio de Janeiro e São Paulo, deliberam até mesmo sobre a liberação do uso de máscaras. Na capital fluminense, as máscaras já não eram obrigatórias em ambientes abertos, e desde ontem são dispensáveis também em locais fechados, como já ocorre em muitas cidades da Europa e dos Estados Unidos.

Em segundo lugar, a decisão de Lira de manter a suspensão das sessões presenciais na Câmara sem data para retorno vai na direção diametralmente oposta ao movimento observado em quase todo o País, qual seja, a volta segura às atividades presenciais. É o que se vê nas escolas, universidades, escritórios, indústrias, estabelecimentos comerciais e culturais Brasil afora. Todos já funcionam em moldes muito próximos ao mundo pré-covid, quando não totalmente livres das restrições impostas pela doença nos últimos dois anos. Ora, por que só na Câmara isso não acontece? 

A resposta talvez seja simples: a atual legislatura na Câmara, sob a liderança de Arthur Lira, dedica-se diuturnamente à defesa de seus interesses corporativos, de uma forma como poucas vezes se viu na história do Parlamento brasileiro.

É evidente que a manutenção das votações remotas é de altíssimo interesse de deputados que não querem voltar ao trabalho em Brasília em 2022 para poder cuidar de seus interesses eleitorais nas bases. Por meio do celular, deputados podem registrar presença e votar matérias em qualquer ponto do Brasil ou até mesmo do exterior, sem enfrentarem o “contratempo” de precisar viajar até Brasília para trabalhar. Enquanto isso, cuidam de suas campanhas com vistas à eleição de outubro.

Com medidas como essa, Lira faz mais um de seus agrados aos colegas. Para quem já escancarou o acesso a bilhões de reais do “orçamento secreto” por meio das emendas de relator para parlamentares do seu grupo político, a benesse do trabalho remoto sem dia para acabar parece até modesta. Mas, na verdade, o custo para a democracia representativa é muito alto.

O debate democrático é mais rico quando travado olho no olho. Pontos de vista diferentes sobre matérias de interesse público são confrontados de forma mais transparente em discussões no plenário da Câmara. A suspensão das sessões presenciais também é nociva por impedir o funcionamento regular das comissões, onde projetos de lei são amadurecidos antes de irem a votação. Não raro, diferentes vozes da sociedade se fazem ouvir nesses colegiados.

A Câmara já deveria ter voltado ao trabalho presencial, exatamente como o resto da sociedade que os deputados supostamente representam.