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Pandemia e a Federação

A Lei Complementar n.º 173/2020 trata como iguais realidades desiguais

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Por Notas & Informações
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Os prefeitos que assumirão hoje terão pela frente um primeiro ano de mandato marcado por uma severa limitação à sua autonomia administrativa. Por força do artigo 8.º da Lei Complementar (LC) n.º 173, aprovada pelo Congresso no fim de maio, estão vedados reajustes de salários e pagamento de bonificações para servidores civis e militares, contratação de funcionários (exceto para reposição de vagas ou para trabalhos temporários) e qualquer reforma administrativa que implique aumento de despesas. As restrições valem até o dia 31 de dezembro de 2021 e também são aplicáveis aos Estados e ao Distrito Federal.

Essas são as contrapartidas estabelecidas pela LC 173, que instituiu o programa federal de combate à pandemia de covid-19, para o repasse bilionário de recursos da União para os entes federativos e para a suspensão dos pagamentos da dívida destes com o Tesouro Nacional em decorrência da crise sanitária. Mas, em que pese seu bom propósito, trata-se de mais uma lei federal que é imposta indistintamente aos entes federativos – em especial aos municípios – desconsiderando a realidade local, muito diversa em um país como o Brasil. O resultado é a dificuldade de implementação ou a injustiça decorrente da falta de calibragem de seus efeitos.

“Os regramentos nacionais, para um país tão heterogêneo como o nosso, sempre podem trazer complicações”, disse ao Estado o secretário executivo da Frente Nacional de Prefeitos (FNP), Gilberto Pierre. Ele tem razão. “Engessar (as Prefeituras) de norte a sul, de leste a oeste, é generalizar demais”, afirmou Pierre.

Não se questiona aqui o acerto do legislador federal ao estabelecer certas contrapartidas para o vultoso auxílio financeiro da União dado aos Estados e municípios no curso da emergência sanitária. Afinal, são bastante conhecidos os casos de entes que são ajudados pela União – ou seja, por todos os contribuintes – nos momentos de aperto, mas pouco ou nada fazem para sair da situação adversa em que se meteram, quando não a aprofundam. O Rio de Janeiro é o exemplo mais notório.

Auxílios federais como o da LC 173 devem ser excepcionais e rigidamente controlados, sob pena de acabarem premiando a incompetência e a incúria de governadores e prefeitos. No entanto, melhor seria se a LC 173 estabelecesse critérios muito claros sobre as circunstâncias que autorizariam o aumento excepcional de despesas, a depender da situação fiscal de cada Estado ou município e da comprovação da necessidade. Meios para auditar esses critérios não faltam. Aí estão os Tribunais de Contas, as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais para fiscalizar os atos do Poder Executivo, além da própria Secretaria do Tesouro Nacional e o Congresso, no que lhes couber.

A situação da capital fluminense, por exemplo, é absolutamente distinta da que se observa na capital paulista, apenas para citar as duas maiores cidades do País. O Rio é a cidade que gasta o maior porcentual de sua receita anual com a folha de pagamento dos servidores (79%). Em São Paulo, dá-se a situação diametralmente oposta: é a capital com a menor relação entre receita e folha de pagamento (46,3%). No entanto, segundo os critérios estabelecidos pela LC 173, ambas as cidades são tratadas como se ostentassem os mesmos indicadores fiscais. A depender do cenário econômico e do estado da crise sanitária em 2021, essas discrepâncias serão mais ou menos acentuadas.

Não se descarta até mesmo a proposição de alterações na LC 173. A constitucionalidade de alguns dispositivos do diploma legal já está sendo analisada pelo Supremo Tribunal Federal. Em algum momento, a Corte terá de se debruçar, mais uma vez, sobre a questão da Federação, sobre os limites da interferência da União nos Estados e municípios.

No fundo, o que se discutirá é se um evento excepcional como a pandemia tem o condão de firmar um regime fiscal provisório que se sobreponha ao arranjo de competências entre os entes federativos firmado pela própria Lei Maior.