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Pandemia não anula a Constituição

Constituição dá à minoria parlamentar instrumentos para fiscalizar o Executivo. Foi esse o teor da decisão do ministro Barroso

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Por Notas & Informações
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Nenhuma circunstância excepcional, nem mesmo a maior crise de saúde em um século, justifica que se ignore a Constituição. E a Constituição confere à minoria parlamentar instrumentos para fiscalizar o Executivo. Foi esse, em essência, o teor da decisão do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, ordenando que o Senado instaure uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), pedida por senadores de oposição, para apurar responsabilidades pela desastrosa administração da pandemia de covid-19.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), vinha procrastinando a instalação da CPI, sob o argumento de que o momento exige a total atenção das instituições no combate à pandemia. Ou seja, investigar a origem e a autoria dos gritantes erros que colaboraram para a disparada do número de mortos e para o colapso do sistema hospitalar era considerado secundário.

Mas, como bem lembrou o ministro Barroso, não cabe ao presidente do Senado adiar a abertura de uma CPI, em razão de suas conveniências políticas, se o requerimento de instalação da comissão cumprir os requisitos constitucionais – número mínimo de assinaturas, existência de fato determinado e limite de tempo de investigação. No caso da CPI da Pandemia, esses requisitos haviam sido atendidos, como demonstraram os senadores no mandado de segurança que apresentaram ao Supremo para contestar a procrastinação.

O ministro Barroso foi didático ao explicar, em seu despacho, que a CPI é instrumento que “viabiliza às minorias parlamentares o exercício da oposição democrática”. Isso fica claro, disse o ministro, quando se observa que o quórum necessário para a abertura da CPI “é de um terço dos membros da Casa legislativa, e não de maioria”, razão pela qual “sua efetividade não pode estar condicionada à vontade parlamentar predominante ou mesmo ao alvedrio dos órgãos diretivos das Casas legislativas”.

Há precedentes para a decisão do ministro Barroso: igualmente provocado por parlamentares de oposição, o Supremo mandou instalar a CPI dos Bingos, em 2005, para apurar escândalo envolvendo um ex-assessor do então ministro da Casa Civil, o petista José Dirceu; e a CPI do Apagão Aéreo, em 2007, para investigar problemas no sistema de tráfego aéreo após o choque entre um Boeing e um jatinho que matou 154 pessoas um ano antes. Nos dois casos, o Supremo interveio em razão das tentativas das Mesas Diretoras do Congresso de adiar a instalação das comissões, violando o direito da minoria.

O presidente do Senado disse que vai cumprir a determinação do ministro Barroso, mas declarou que se trata de “um ponto fora da curva” ante “a gravidade da pandemia”, que “nos exige união”. Além disso, declarou que a CPI pode ser “o coroamento do insucesso nacional do enfrentamento da pandemia” e que pode servir como “palanque político”, em “antecipação de discussão político-eleitoral de 2022”, em referência à eleição presidencial.

O raciocínio é flagrantemente falacioso, em muitas dimensões. Em primeiro lugar, “ponto fora da curva” é descumprir a Constituição. Em segundo lugar, se há “insucesso” no enfrentamento da pandemia, não se deve a nenhuma CPI, que nem existe ainda. Ademais, quem tem usado a pandemia para antecipar a campanha eleitoral é o presidente Jair Bolsonaro. Por fim, mas não menos importante, se quer “união”, o presidente do Senado deve cobrá-la não do Supremo, que está somente cumprindo seu papel constitucional, e sim de Bolsonaro, cuja especialidade é desunir.

Bolsonaro reagiu à decisão do ministro Barroso da maneira habitual. Disse que “falta coragem moral” e “sobra ativismo judicial” ao ministro, a quem acusou de fazer “politicalha”, em conjunto com a oposição, “para desgastar o governo”. Nem parece o Bolsonaro que, em 2007, aplaudiu a instalação da CPI do Apagão Aéreo, na expectativa de que desgastasse o governo do petista Lula da Silva. Em discurso na Câmara, o então deputado Bolsonaro declarou, sobre a responsabilidade pela crise, que “o comandante, o chefe, é sempre responsável por tudo o que acontece ou deixa de acontecer em seu quartel”.

Pois é justamente disso que se ocupará a CPI da Pandemia.