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Partido não pode ter dono

Apropriação de siglas por algumas pessoas recai desastrosamente sobre o regime democrático

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Por Notas e Informações
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O sistema político-eleitoral tem graves deficiências, que evidenciam a necessidade de uma profunda reforma política. No entanto, pode-se ter a impressão de que, com um quadro tão disforme, seria impossível solucionar todos os problemas ou que seria difícil até mesmo definir as deficiências principais. Trata-se, a rigor, de uma falsa dificuldade. Há determinados problemas que geram enormes e reiteradas distorções, e enfrentá-los seriamente pode proporcionar, de imediato, um cenário político muito diferente. Um desses problemas, que geram disfuncionalidade em todo o sistema, se encontra no fato de que, no País, partidos têm donos.

Pela lei, os partidos são entidades privadas de caráter associativo, cujos filiados têm iguais direitos e deveres. No entanto, isso é o que está no papel. Na prática, legendas são controladas por poucas pessoas, que não apenas decidem sozinhas os rumos da agremiação – ou seja, ela não funciona internamente como órgão de representação –, como muitas vezes desfrutam de significativos benefícios financeiros advindos dessa relação de domínio com a legenda. Ter um partido político no Brasil pode ser um negócio lucrativo.

Recentemente, o domínio sobre as legendas e, muito especialmente, sobre o dinheiro das legendas por parte de algumas poucas pessoas ficou ainda mais explícito. Segundo revelou o Estado, três partidos comunicaram ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que o destino de parte relevante dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, o Fundo Eleitoral, será decidido apenas por suas respectivas direções executivas.

Em relação ao Progressistas (PP) e ao Solidariedade (SD), todo o montante recebido do Fundo Eleitoral será decidido por suas respectivas executivas. O PP receberá R$ 140 milhões e o SD, R$ 46 milhões. Em 2020, o PSL receberá R$ 199,4 milhões do Fundo Eleitoral. Desse total, R$ 99,7 milhões terão o seu uso definido pela executiva da legenda.

O sistema é tão disfuncional que o voto de 2018 pela renovação da política, que fez o PSL se tornar a segunda maior bancada da Câmara dos Deputados – antes era um partido nanico –, contribui agora para que o velho sistema não só permaneça, mas se fortaleça. Basta ver que o presidente da legenda, deputado Luciano Bivar (PE), nunca recebeu tanto dinheiro público para dispor como bem entender na campanha.

Se a destinação de dinheiro público para campanha política já é por si só uma indecência – não deveria haver Fundo Partidário e Fundo Eleitoral –, a situação torna-se verdadeiramente dramática quando a decisão sobre o uso desses recursos é restrita a um grupo reduzido de pessoas, muitas delas envolvidas em escândalos. Por exemplo, Paulinho da Força (SP), presidente do SD, que terá R$ 46 milhões para gastar na campanha eleitoral, foi condenado em junho pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a 10 anos e 2 meses por crime contra o Sistema Financeiro Nacional, lavagem de dinheiro e associação criminosa, envolvendo recursos do BNDES. A decisão ainda não transitou em julgado.

A apropriação de partidos por algumas pessoas não gera, no entanto, problemas apenas de mau uso de recurso público. Essa deformidade recai desastrosamente sobre o regime democrático. Os caciques controlam as listas de candidatos e, principalmente, quem receberá prioridade no uso dos recursos. Assim, o eleitor é tolhido em seu fundamental direito de voto, uma vez que existe um poderoso filtro prévio sobre o qual não tem controle, na definição das candidaturas. O cidadão não pode votar em quem ele quiser. Votará em quem os caciques deixarem.

A solução não é acabar com os partidos, tampouco mudar a Constituição para liberar candidaturas livres, desvinculadas dos partidos – o que seria um contrassenso, num regime representativo. O problema deve ser atacado em sua raiz, por meio do fortalecimento da dimensão representativa das legendas. Um passo, por exemplo, é a extinção do financiamento público. Outro, que pode ser dado imediatamente, é o exercício consciencioso dos direitos e deveres pelos filiados dos partidos. A democracia se ressente quando eles se deixam manipular por caciques partidários. Partido não tem dono.