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Pragmatismo bem-vindo

Novo discurso de Bolsonaro, na direção de entendimento com os chineses, pode resultar bons negócios para o Brasil.

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Por Notas & Informações
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Demorou quase todo o primeiro ano do mandato, mas afinal o presidente Jair Bolsonaro parece ter abandonado o discurso hostil em relação à China e se dobrado às evidências de que é tolo arranjar confusão com o maior parceiro comercial brasileiro. Mais do que isso: o novo discurso de Bolsonaro vai na direção de um entendimento mais amplo com os chineses, do qual podem resultar bons negócios para o Brasil.

Trata-se de um pragmatismo muito bem-vindo. O superávit comercial do Brasil nas transações com a China chegou a US$ 29,5 bilhões no ano passado, o equivalente à metade do saldo total da balança comercial e 46% maior que o de 2017. Neste ano, de janeiro a outubro, o superávit brasileiro com a China já é de US$ 21,457 bilhões e atingiu mais de 60% do superávit total.

A China respondeu pela compra de 27% de tudo o que o Brasil exportou no ano passado, seguida de longe pelos Estados Unidos, com 12%. Isso basta para mostrar o tamanho do erro que o presidente Bolsonaro vinha cometendo ao antagonizar a China enquanto prometia forjar uma aliança incondicional com os Estados Unidos. Ao mesmo tempo que os chineses ampliam suas compras no País e também os investimentos diretos em diversos setores – especialmente em infraestrutura, petróleo, serviços e inovação –, os norte-americanos mostram-se reticentes em relação ao Brasil. É bom lembrar que o governo dos Estados Unidos recentemente manteve o veto fitossanitário à compra de carne brasileira, a despeito das juras de amizade feitas por Bolsonaro ao presidente norte-americano, Donald Trump. Com isso, sem muita sutileza, Trump lembrou ao presidente brasileiro que países não têm amigos, têm interesses.

É em nome desses interesses que finalmente o governo brasileiro mudou o tom em relação à China. Há não muito tempo, o chanceler Ernesto Araújo afirmou que a estagnação do desenvolvimento brasileiro se acentuou quando a China se tornou o maior parceiro comercial do País, sugerindo uma absurda relação de causa e efeito. Na mesma ocasião, o ministro Araújo disse que o Brasil, sob Bolsonaro, deixaria de “vender nossa alma” à China. O chanceler apenas ecoava as palavras do presidente, que, na campanha eleitoral, disse que “a China não compra do Brasil, a China está comprando o Brasil”.

Toda essa arenga foi alimentada por um ex-astrólogo que vive na Virgínia e por um ex-assessor de Donald Trump considerado lunático demais até para os padrões do presidente norte-americano. Felizmente, ao que parece, o presidente Bolsonaro está dando menos ouvidos a esses irresponsáveis e decidiu trabalhar com a realidade. “A China cada vez mais faz parte do futuro do Brasil”, reconhece agora Bolsonaro.

Essa abertura não pode ser feita sem que se levem em conta os enormes desequilíbrios dessa relação. Dos produtos brasileiros exportados para a China em 2018, soja, petróleo e minério de ferro responderam por 82% do total, ao passo que os manufaturados, de maior valor agregado, não chegaram a 3%. Enquanto isso, dos produtos chineses importados pelo Brasil, quase 98% eram manufaturados. Isso significa que os negócios entre os dois países têm gerado melhores empregos na China do que no Brasil, a despeito do saldo comercial ser favorável ao Brasil.

Assim, se é inevitável a ampliação de negócios com a China, essa aproximação não pode ser feita sem que se considere a realidade brasileira – especialmente a baixa competitividade da indústria nacional.

A nova fase das relações com a China também não pode ser pautada por declarações tão retumbantes quanto vazias de sentido. Não é possível levar a sério, por exemplo, a suposta intenção do governo de formar com a China uma zona de livre comércio sem combinar com o Mercosul, cujas regras vetam que seus membros assinem acordos desse tipo por fora do bloco, e sem melhorar o péssimo ambiente de negócios do Brasil para ter um mínimo de competitividade. Ou seja, mesmo quando demonstra pragmatismo, o governo Bolsonaro, fiel à sua natureza, não resiste a um devaneio.