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Reforma não é só corte de gastos

Um Estado deve ser capaz de desempenhar suas tarefas de modo adequado para os cidadãos seja qual for o grupo que esteja no poder, mesmo em meio a crises políticas ou econômicas

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Por Notas & Informações
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Há um equívoco de princípio na discussão sobre a reforma administrativa que o governo, conforme anunciou recentemente o presidente Jair Bolsonaro, pretende enviar ao Congresso em breve. Eleita com a promessa de enxugar a máquina pública, a atual administração federal parece entender que a reforma deve ser primordialmente direcionada ao fim de privilégios do funcionalismo e à redução do quadro de servidores. Nem se discute o quão necessárias são essas medidas saneadoras, mas a questão é que uma reforma administrativa não pode se resumir a cortes e contenções, nem pode ter como finalidade apenas o igualmente necessário equilíbrio das contas públicas. As mudanças deveriam ter como princípio a reorganização profunda do Estado, de maneira a garantir o profissionalismo de seus agentes e a restabelecer a prevalência do interesse público em seu funcionamento, algo que hoje em larga medida não se verifica.

Um Estado deve ser capaz de desempenhar suas tarefas de modo adequado para os cidadãos seja qual for o grupo que esteja no poder, ou mesmo – e talvez principalmente – em meio a crises políticas ou econômicas. Isso só é possível se houver um corpo burocrático verdadeiramente qualificado e, sobretudo, um sistema em que o foco não seja apenas a eficiência – em que a questão do custo é fundamental –, mas também o envolvimento dos cidadãos na definição de soluções. É preciso um Estado pelo qual o conjunto dos brasileiros se sinta responsável, em nome da preservação da coisa pública.

Uma reforma administrativa tem de ser capaz de reconectar os cidadãos ao Estado, hoje visto como uma corte de privilegiados apartada da sociedade e dedicada apenas a explorar as pessoas comuns em benefício próprio. Somente desse modo seria possível conferir legitimidade a políticas públicas frequentemente questionadas por emanarem não da construção democrática de consensos com vista a atender o interesse geral do País, mas da articulação de coxia entre operadores políticos a serviço de corporações.

O Estado deve dar conta de realizar planejamento de longo prazo, essencial para a definição de políticas públicas sólidas nas mais diversas esferas sociais e econômicas. O que mais se observa, contudo, é a interrupção ou o abandono de projetos sempre que há mudança na chefia do governo – é comum ver presidentes, governadores e prefeitos acusarem seus antecessores de lhes legarem uma “herança maldita” e começarem tudo do zero, ou quase isso. Obviamente, o resultado disso é um dispêndio desnecessário (e enorme) de energia e recursos estatais, e também a sensação de que o Estado tem “dono” – o grupo político que chega ao poder –, o que colabora decisivamente para desestimular a participação dos cidadãos.

Um Estado reformado deve necessariamente refletir a complexidade das demandas da sociedade e ser capaz de enfrentar as vicissitudes políticas sem descaracterizar-se como sustentáculo de estabilidade e de cidadania. Limitar-se a reduzir seu tamanho, demitindo funcionários e cortando custos, não é uma medida que se possa chamar de reforma.

A julgar pelo que se soube até aqui sobre a proposta que o governo pretende encaminhar, prevalece uma concepção estreita e imediatista do Estado. A ideia – caso o reticente Bolsonaro realmente resolva mesmo levá-la adiante – é eliminar “penduricalhos” que vitaminam os vencimentos de servidores, como promoção por tempo de serviço; acabar com a aposentadoria compulsória como “punição” para o funcionário que comete infração disciplinar; estabelecer férias de 30 dias para todo o serviço público; e efetivar somente os funcionários concursados que se mostrarem aptos ao serviço, após avaliação mais rigorosa que a atual.

É evidente que todas essas medidas são importantes e espanta que ainda não tenham sido tomadas, o que só comprova a força corporativa do funcionalismo público. Mas nem sequer arranham o fulcro da crise do Estado – que, entra governo, sai governo, continua a se sustentar em arranjos pouco transparentes e nada democráticos.