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Renda em queda ameaça retomada

Falar em recuperação rápida é escarnecer de milhões de pessoas cuja vida real tem sido sistematicamente apagada dos cenários do governo

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Por Notas&Informações
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Decerto o País voltaria a sorrir, aliviado, se as projeções do governo anunciadas nos últimos dias se concretizassem. Emprego para mais 5 milhões de brasileiros hoje sem ocupação, crescimento econômico acima de 2% em 2022 e “crescimento estrutural” da produtividade estão entre as joias que, segundo um alto funcionário do Ministério da Economia, adornarão o cenário em que os brasileiros voltarão a viver felizes.

Irritantemente, porém, a realidade, continua a empalidecer o quadro de cores vibrantes que o governo insiste em mostrar ao público, na tentativa de convencê-lo da inexcedível competência de um homem público, hoje na Presidência da República, cujo desempenho compromete o presente e o futuro do País.

A inflação torna mais pobre quem tem renda, a prometida recuperação é lenta e a combinação de diversos fatores ameaça a atividade econômica em 2022. Ao contrário do governo, instituições privadas já preveem crescimento pífio do Produto Interno Bruto (PIB), de 1% ou menos, no ano que vem.

Quem vive do rendimento do trabalho está vendo sua renda ser lenta, mas sistematicamente corroída pela alta generalizada dos preços. Recomposições salariais dos empregados formais não estão mais nem repondo a inflação. A perda de renda real, já observada entre trabalhadores sem carteira assinada, estende-se aos que têm registro. Dúvida sobre o valor exato dos benefícios do Auxílio Brasil, o substituto bolsonarista do Bolsa Família, que começaram a ser pagos no dia 17 de novembro, ameaça o rendimento dos mais pobres, cujo número aumentou.

Falar em recuperação rápida do emprego, da renda e da atividade econômica no momento é escarnecer de milhões de pessoas cuja vida real tem sido sistematicamente apagada dos cenários do governo.

Trabalhadores que mantiveram emprego com carteira assinada durante e depois da fase mais crítica da pandemia de covid-19 certamente estão em situação melhor do que a dos que conseguiram ocupação informal, sem garantias legais e geralmente de remuneração mais baixa, ou a dos que ficaram sem ocupação. Mas mesmo os empregados formais pagam o preço de uma economia prejudicada por políticas sem rumo do governo Bolsonaro e, agora, pela alta da inflação.

O Salariômetro, pesquisa realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) da Universidade de São Paulo, constatou que o reajuste mediano das negociações coletivas (convenções e acordos coletivos) concluídos em setembro ficou 1,9 ponto porcentual abaixo do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), calculado pelo IBGE e que baliza as negociações salariais.

É a maior perda real de salário observada em 12 meses. Menos de 10% das 140 negociações fechadas no mês resultaram em algum ganho real para os trabalhadores. Benefícios que costumam fazer parte desses entendimentos entre empregados e empregadores tiveram seu valor reduzido. O vale-alimentação, cujo valor real mediano chegou a superar R$ 450 em junho do ano passado, ficou em R$ 253 nos acordos de setembro. A redução do rendimento se estende também para outros trabalhadores. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) Contínua, do IBGE, o indicador mais amplo e confiável da situação do mercado de trabalho brasileiro, mostrou que o rendimento real habitualmente recebido em todos os trabalhos pelas pessoas ocupadas no trimestre de junho a agosto de 2021 ficou em R$ 2.489, 4,3% menor do que o do trimestre março-maio e nada menos que 10,2% menor do que o de um ano antes.

A manutenção de altas taxas de desocupação e a renda real em queda fizeram estagnar a massa de rendimento real. Programas sociais que, em parte do ano passado, contribuíram para reduzir o número de pessoas na faixa de pobreza e evitar queda mais intensa da atividade econômica foram reformulados, sem que seu impacto fosse avaliado.

É difícil imaginar que essa combinação, cujo resultado é perda generalizada de renda, possa estimular o consumo de bens e serviços nos próximos meses. O quadro, por isso, continua ruim, muito ao contrário do que o governo tenta desenhar.