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Retrato da degradação

O aumento no fundo eleitoral mostra que o Congresso parece empenhado em desmontar o pouco que resta de contenção contra os maus hábitos da “velha política”

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Por Notas&Informações
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Eleito com a festiva expectativa de inaugurar uma “nova política”, o atual Congresso parece empenhado em desmontar o pouco que resta de contenção contra os maus hábitos da “velha política”.

A mais recente ofensiva se deu na quinta-feira passada, e seguiu rigorosamente o roteiro da esperteza parlamentar que faz a festa de partidos fisiológicos e de políticos oportunistas enquanto dilapida o erário e ajuda a empobrecer o País.

À socapa, sem dar qualquer possibilidade de debate, adicionou-se ao projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2022 um aumento obsceno no fundo de financiamento eleitoral. Segundo cálculos de técnicos da Câmara, a mudança fará o fundo saltar para R$ 5,7 bilhões, um aumento de 185% em relação aos R$ 2 bilhões destinados à campanha eleitoral de 2020.

O valor coloca o Brasil como um dos países que mais gastam dinheiro público com partidos e candidatos no mundo – tudo isso em meio à penúria generalizada causada pela pandemia de covid-19.

Diante da repercussão negativa, vários parlamentares, a começar pelos governistas, disseram que votaram a favor do projeto de LDO, mas não do aumento do fundo. O próprio presidente Jair Bolsonaro tratou de responsabilizar o deputado Marcelo Ramos (PL-AM), que conduziu a votação na Câmara. Na versão do presidente, Marcelo Ramos, que é vice-presidente da Câmara, manobrou para aprovar o aumento do fundo eleitoral.

Ora, se estivessem realmente interessados em impedir a aprovação, os agora indignados parlamentares governistas poderiam ter se juntado ao esforço de um punhado de partidos que apresentaram destaque contra a medida. Como o destaque foi facilmente derrubado, em votação simbólica, sem qualquer mobilização por parte dos aliados do Palácio do Planalto, presume-se que poucos parlamentares queriam de fato barrar o aumento.

Ademais, a aberração poderia ter sido abortada no Senado, mas, assim como na Câmara, passou sem dificuldade, com votos nominais de vários governistas.

O governo poderia, se quisesse, pelo menos dificultar a tramitação do aumento escandaloso do fundo eleitoral, mas não o fez: seus articuladores no Congresso deixaram correr a esbórnia, embora tivessem pleno conhecimento do que estava sendo operado.

Nada do que se passou no Congresso nesse inacreditável episódio teria acontecido se não fosse fruto de um grande acordo. E o presidente Bolsonaro, a quem cabe agora a decisão de vetar ou não o aumento do fundo eleitoral, pode até afetar indignação com o que chamou de “casca de banana”, mas, quando poderia ter interferido na questão, orientando seus líderes no Congresso, mais uma vez se omitiu – o que, em política, geralmente é lido como aval.

Essa deliberada ausência do presidente da República na articulação parlamentar não apenas confunde sua base, como dá ao Congresso uma autonomia política impensável num regime presidencialista. O reflexo mais óbvio disso é a facilidade com que deputados e senadores vêm criando mecanismos para dispor do Orçamento como bem entendem, não raro longe dos radares democráticos – tudo isso sob o olhar catatônico de um presidente que só se interessa pelo que acontece no Congresso na medida em que isso afeta as chances de terminar seu mandato.

A rigor, o festim com verba pública nas campanhas eleitorais nem deveria ser permitido. Não há nenhum argumento razoável para obrigar o contribuinte a aceitar que o dinheiro do seu imposto seja usado para financiar partidos e candidatos com os quais não se identifica.

Democracia representativa dá trabalho: presume que os partidos sejam capazes de convencer seus eleitores não apenas a lhes dar votos, mas a lhes proporcionar capacidade de subsistência, por meio de doações e de participação. Para isso, contudo, os partidos deveriam ser ideologicamente discerníveis uns dos outros, de modo a despertar no eleitor o genuíno sentimento de representação. Sabemos que raros são os partidos capazes disso – a maioria representa apenas seus donos e seus interesses privados. O imoral aumento do fundo eleitoral é consequência natural dessa degradação da democracia.