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Saneamento, uma questão de consciência

Não existe respeito à dignidade humana sem rede de água e de esgoto

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Por Notas e Informações
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A pandemia de covid-19 exige, em diversas frentes, uma atuação diligente do poder público. Vidas importam e é preciso atuar em consequência, sem dar margem para conflitos inúteis, atrasos desnecessários ou omissões irresponsáveis. Nessa empreitada, há um tema antigo que urge ser enfrentado – o saneamento básico. Se já era evidente a necessidade de um novo marco regulatório para o saneamento básico no País, a covid-19 escancarou as desumanas consequências de tolerar que parte significativa da população ainda não tenha acesso, em pleno século 21, à infraestrutura básica de água e esgoto.

Segundo dados do IBGE, 74,15 milhões de brasileiros (35,7% da população) vivem em domicílios sem acesso à coleta de esgoto, ou seja, em ambiente insalubre e vulnerável a doenças. Realidade especialmente preocupante é o fato de que 2,1% da população não dispõe de nenhuma forma de esgotamento sanitário. Isso significa que cerca de 4,4 milhões de pessoas fazem suas necessidades a céu aberto. Diante desse quadro, seria uma enorme hipocrisia – verdadeiro descaso com milhões de brasileiros – que o enfrentamento da pandemia do novo coronavírus não incluísse a modernização do regime legal do saneamento básico, para atrair investimentos para o setor e assegurar um mínimo padrão de qualidade a respeito desse serviço essencial. Na vida civilizada não existe respeito à dignidade humana sem rede de água e de esgoto.

Em dezembro do ano passado, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei (PL) 4.162/2019, que atualiza o marco legal do saneamento básico. Atualmente em tramitação no Senado, o projeto tem conteúdo muito semelhante a duas medidas provisórias (MPs) editadas no governo de Michel Temer e que perderam validade – a MP 844/2018 e a MP 868/2018.

O PL 4.162/2019 traz três grandes mudanças no regime do saneamento. Em primeiro lugar, centraliza a regulação dos serviços de saneamento na esfera federal, atribuindo à Agência Nacional de Águas (ANA) competência para editar normas de referência sobre o serviço de saneamento. Atualmente, cada município regula o assunto, o que gera uma multiplicidade de regras e afasta investimentos. Vale lembrar que o Brasil tem 5.570 municípios.

A segunda mudança do PL 4.162/2019 é a obrigatoriedade de licitação, tema fundamental para a melhoria do serviço de saneamento. No regime atual, muitos contratos de empresas de saneamento com as prefeituras são continuamente prorrogados, sem controle da qualidade do serviço prestado. Além disso, boa parte desses contratos não exige de forma efetiva investimentos regulares, o que perpetua uma situação sanitária absolutamente precária. Por exemplo, 35 milhões de brasileiros vivem ainda hoje sem abastecimento de água encanada nas periferias das grandes cidades.

Junto à necessidade de licitação, o PL 4.162/2019 estabelece metas para as empresas de saneamento. Sejam elas públicas ou privadas, as empresas terão de cumprir determinados parâmetros, como porcentual mínimo de universalização da rede de água e de esgoto. Em caso de descumprimento, poderão sofrer sanções do órgão regulador e ficarão proibidas de distribuir lucros e dividendos.

A terceira grande novidade do PL 4.162/2019 refere-se à questão da escala, permitindo regionalizar a prestação do serviço de saneamento a partir da montagem de blocos de municípios. A medida é imprescindível para atrair investimento para as pequenas localidades. De acordo com o texto em análise pelo Senado, municípios de um mesmo bloco não precisam ser vizinhos. Além disso, a Câmara assegurou o caráter voluntário da adesão de uma cidade a um determinado bloco. Caberá ao município decidir se ingressa no bloco correspondente ou se vai fazer a licitação do serviço sozinho.

Não resta dúvida de que o PL 4.162/2019 representa um importante passo para a melhoria da infraestrutura de saneamento no País. O assunto já foi muito discutido e é mais que hora de o Congresso concluir sua votação. Cada semana a mais, cada mês a mais sem um adequado marco regulatório do saneamento básico significa tolerar o intolerável. É desumano acostumar-se a que parte considerável da população não tenha acesso à rede de água e de esgoto.