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Selvageria institucional

Pior do que a transformação de uma viatura em câmara de gás é a tentativa da polícia de justificar essa atrocidade

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Por Notas & Informações
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“A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”, disse Joaquim Nabuco. Parafraseando-o, pode-se dizer que os porões da ditadura permanecerão por muito tempo como um traço persistente de parte do aparato de segurança do Estado brasileiro. Muito além da selvageria de três policiais, gravada em chocantes imagens que rodaram o mundo, o assassinato de Genivaldo de Jesus Santos em uma câmara de gás improvisada em uma viatura da Polícia Rodoviária Federal (PRF) em Sergipe expõe a conivência de estruturas de poder, até o seu topo, com o desprezo pela lei e pela humanidade.

Já imobilizado – depois de, segundo os policiais, ter reagido agressivamente à abordagem –, Santos, que estava desarmado, foi jogado na parte de trás da viatura e asfixiado com gás lacrimogêneo. 

O episódio em si já é suficientemente revoltante, mas a reação da PRF conseguiu ser ainda pior. Em lugar de reconhecer a barbárie registrada em incontestáveis imagens e de pedir desculpas à família da vítima e ao País, a autoridade policial entendeu que era o caso de justificar a ação de seus agentes. Num misto de crueldade e escárnio, a PRF declarou, em nota oficial, que “foram empregadas técnicas de imobilização e instrumentos de menor potencial ofensivo”.

A menos que o superintendente da PRF aponte em que seção dos manuais da corporação constam essas “técnicas” desumanas, ele deve ser imediatamente afastado. Os policiais “transformaram um instrumento de contenção em área aberta (gás lacrimogêneo) em uma prática que pode ser classificada como tortura, porque (Santos) já estava contido”, disse ao Estadão Renato Sérgio de Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Nem era preciso a opinião de um especialista. As imagens falam por si.

Santos não oferecia nenhum risco real aos policiais. Ademais, sofria de transtorno mental e tentou dizer isso aos policiais, mas foi ignorado. No entanto, mesmo que fosse um perigoso criminoso a ameaçar a integridade dos agentes, Santos não poderia ter sido tratado daquela maneira. O Estado não pode simplesmente assassinar suspeitos desarmados e rendidos; sua tarefa é prendê-los e levá-los a julgamento. É isso o que diz a lei.

Essa mesma lei havia sido ignorada no dia anterior, quando uma operação policial na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, deixou 25 mortos – nenhum deles da polícia. Mesmo que todos fossem bandidos – o que, já se sabe, não era o caso –, o morticínio já seria, por si só, evidência de que a operação foi malsucedida.

Mas esse caso do Rio, como o de Sergipe, confirma que o valor da vida caiu drasticamente com o triunfo da necropolítica bolsonarista. O presidente Jair Bolsonaro tratou logo de congratular os “guerreiros” da polícia por sua ação na Vila Cruzeiro. Das 197 palavras de sua mensagem radiante no Twitter, dedicou apenas quatro à família da mulher morta por um tiro de fuzil dentro de casa. Como não há imagens dessa ação, será a palavra da corporação policial contra a dos poucos cidadãos comuns que ousarem questionar os procedimentos da polícia.

Ou seja, não fosse pelas imagens registradas pela população local, o assassinato de Genivaldo de Jesus Santos já teria se dissolvido nas estatísticas como mais uma morte em “confronto”. Não é à toa que bolsonaristas defendem o fim das câmeras nos uniformes policiais, como as adotadas em São Paulo, pois esse equipamento obriga a polícia a agir dentro da lei. Sem elas, os cidadãos ficam à mercê do arbítrio de policiais nem sempre comprometidos com padrões mínimos de civilidade.

“Existem dois currículos nas forças de segurança”, disse à Rádio Eldorado Adilson Paes de Souza, tenente-coronel aposentado da PM de São Paulo. “Um, oficial, escrito pelas normas (...) que tutelam os direitos humanos, as garantias constitucionais e a preservação da vida. E existe um outro ‘currículo oculto’ e cultural, que é o que existe no dia a dia, que ensina aos alunos a promover a segurança pública dentro de uma lógica de eliminação do inimigo.” É preciso impedir, de uma vez por todas, que esse estímulo à barbárie, exatamente como nos piores momentos da ditadura militar, continue a animar o guarda da esquina.