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Só há ordem com respeito à lei

Numa democracia digna do nome, a ordem é resultado de uma construção coletiva que parte da sociedade; qualquer coisa fora disso é apenas baderna

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Por Notas e Informações
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Viceja no País um clima de crescente desordem. Policiais militares – encapuzados, armados e sindicalizados – mantêm governantes e cidadãos como reféns de suas vontades, tudo ao arrepio da lei que todos esses servidores, uma vez envergada a farda e armados pelo Estado, juraram respeitar e fazer valer. Não bastasse isso, e talvez seja esse o principal problema, esses policiais amotinados, em lugar de serem censurados e punidos pelo poder público, são tratados como força política legítima – a tal ponto que recebem atenção e apoio inclusive do presidente da República, Jair Bolsonaro, e de parlamentares bolsonaristas. No recente episódio em que o senador Cid Gomes foi baleado por policiais grevistas em Sobral (CE) ao tentar furar um bloqueio usando uma retroescavadeira, o senador Flávio Bolsonaro, por exemplo, disse que a tentativa de assassinato foi um exercício de “legítima defesa” por parte de “pessoas que estão reivindicando melhores salários” – em referência aos delinquentes que, com o rosto coberto e armados, sequestraram viaturas da polícia e aterrorizaram comerciantes.

Vem de cima, portanto, o mau exemplo do elogio à truculência. Em 2017, quando ainda era apenas candidato a presidente, Jair Bolsonaro defendeu os policiais que fizeram greve e provocaram o caos no Espírito Santo. Alguns dos líderes daquela greve e de outras aproveitaram a notoriedade da rebelião que lideraram e se elegeram deputados, e vários ajudam a formar a base que se alinha ao bolsonarismo. É bom lembrar, ainda, que todos os envolvidos nos levantes de policiais nos últimos anos foram anistiados pouco tempo depois, como se não tivessem cometido delito algum.

Há portanto um processo de normalização e legitimação da afronta à lei, que parece se agravar justamente no mandato do presidente que se elegeu prometendo “restabelecer a ordem” no Brasil, como disse Bolsonaro em seu discurso de posse.

O problema é que Bolsonaro sempre se apresentou como defensor da “ordem”, mas não da lei. Seus discursos corriqueiros em favor do assassinato de suspeitos por policiais, da eliminação física de opositores do regime militar e da tortura durante a ditadura deveriam bastar para mostrar que seu conceito de “ordem” passa longe do que preconiza o cânone da democracia liberal. Nesta, a ordem só existe como corolário do respeito incondicional à lei – e não é possível que um admirador confesso e ruidoso de um notório torturador, como foi o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, seja ao mesmo tempo respeitador da lei. A incompatibilidade é evidente, pois a lei é justamente o que impede que um suspeito de crime seja torturado para confessá-lo.

Não é uma questão trivial. Quando o parâmetro não é a lei, mas apenas a “ordem”, impera o arbítrio. Desde sua posse, o presidente Bolsonaro, fiel a essa visão distorcida da democracia, vem desrespeitando sistematicamente as instituições que estão na base da república. Ao perseguir jornais e jornalistas, ao menosprezar a relação com o Congresso e ao desrespeitar a liturgia do cargo, como se tudo pudesse, o presidente vai criando um ambiente de desordem que começa a se espraiar.

A bem da verdade, não é de hoje que um presidente faz troça das instituições e da lei. Já passaram à história as seguidas ofensas de Lula da Silva ao Judiciário, bem como sua bênção à corrupção desbragada promovida pelo PT no Congresso. Bolsonaro, aliás, elegeu-se justamente em razão da revolta dos brasileiros ante essa demonstração cabal e sistemática de desrespeito à democracia. O problema é que, no lugar da desfaçatez lulopetista, se instalou a agressividade bolsonarista, que implode pontes políticas e, assim, alimenta a atmosfera de vale-tudo.

A verdadeira ordem, tão necessária para o desenvolvimento do País, não virá com ofensas, gritarias e elogios à violência nem será ditada pela vontade de quem está no poder. Numa democracia digna do nome, a ordem é resultado de uma construção coletiva, em que a sociedade, por meio de seus representantes políticos livremente escolhidos, estabelece as regras básicas de convivência. Qualquer coisa fora disso é apenas baderna.