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Terremoto geopolítico

A disputa entre Estados Unidos e China determinará os destinos do século 21

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Por Notas & Informações
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O novo pacto de defesa entre Austrália, Reino Unido e EUA (Aukus) marca um capítulo decisivo do que vem sendo chamado de “nova guerra fria”. O objetivo é traçar uma linha de contenção às ameaças chinesas no Indo-Pacífico, mas, como na antiga guerra fria, seu impacto move as placas tectônicas geopolíticas de todo o planeta. Os tremores já se fazem sentir.

O pacto é uma complexa colaboração diplomática e militar, envolvendo tecnologias como computação quântica e inteligência artificial. Sobretudo, estabelece o compromisso de auxiliar a Austrália a adquirir uma frota de submarinos nucleares. A resposta da China foi imediata: o país se ofereceu para integrar o pacto comercial transpacífico entre 11 países da região, enquanto seus diplomatas “lobos guerreiros” acusavam a “mentalidade da guerra fria” americana.

Mas, se a polarização entre EUA e China justifica a alusão à velha guerra fria, há muitas diferenças. As relações com a China são multivalentes: além da rivalidade militar, envolvem trocas econômicas e a colaboração em objetivos comuns, como as mudanças climáticas. A China é a principal parceira comercial da Austrália e tem relações econômicas volumosas com EUA e Reino Unido. Diferentemente da Otan, o bloco criado para conter a URSS, a detenção da China está sendo construída por uma pluralidade de alianças. 

Sintomático dessa complexidade é o fato de que foram justamente as pressões econômicas da China sobre a Austrália, após esta ter pedido uma investigação sobre as origens da covid-19, que motivaram Camberra a costurar a aliança. O foco nas forças navais é consequente. A China foi o país que mais incrementou suas Forças Armadas nesta geração, especialmente sua Marinha, com vistas à anexação de Taiwan e à hegemonia no oeste do Pacífico.

Não surpreende que o Aukus tenha sido bem recebido por países como a Índia – que no ano passado se chocou com a China no Himalaia – e o Japão – que disputa territórios no Pacífico. Vietnã, Filipinas e Coreia do Sul também sentiram o aumento das pressões chinesas nos últimos anos. Esses países são aliados atuais ou potenciais dos EUA. Nesta semana, o país recebe a cúpula do Quad – a aliança com Austrália, Índia e Japão. São passos que marcam a transição inexorável das prioridades geopolíticas americanas do Atlântico para o Pacífico.

O anúncio é conveniente para a administração Biden, que, após a saída caótica do Afeganistão, tenta virar a página das guerras de ocupação no Oriente Médio. Quão importante é o foco no Indo-Pacífico fica claro ante os previsíveis efeitos colaterais que os americanos se dispuseram a assumir.

Um deles é o abalo nos esforços de não proliferação nuclear. Os submarinos não conterão arsenal nuclear, mas serão movidos a energia nuclear, uma tecnologia que até então os EUA só haviam transferido ao Reino Unido. Há pouco receio de que a Austrália se disponha a enriquecer urânio e muito menos construir bombas. Mas países que flertam com essa possibilidade, como a Coreia do Sul ou o Irã, podem se considerar legitimados a avançar seus programas nucleares.

Mais marcante é o abalo nas alianças europeias. A França, que perdeu um contrato naval multibilionário com a Austrália, diz ter levado uma “facada nas costas” e reforçou seus apelos por uma “autonomia estratégica” europeia em relação aos EUA. A Otan, que já foi desmoralizada pelas decisões unilaterais dos EUA no Afeganistão, deve enfrentar uma crise existencial ante a transição axial do seu maior líder e financiador para o Pacífico.

Claramente, os americanos consideraram que valia a pena abrir algumas fissuras nas alianças ocidentais no Atlântico para mostrar solidez nas alianças ocidentais no Pacífico. Para a China, é um sinal de que está se concretizando o seu maior temor: a multilateralização das alianças americanas na região. O novo foco dos EUA no Pacífico é inevitável. Mas a política externa americana, tão volúvel nos últimos anos, precisará tratar das feridas abertas, sob pena de expor seus antigos aliados e o resto do mundo à estratégia chinesa de dividir e conquistar.