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Transparência não é concessão do Estado

A obstinação em ocultar e distorcer dados mostra que o governo não quer que os brasileiros conheçam a verdade e sejam libertados por ela

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Por Notas & Informações
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Apesar das advertências dos especialistas, o governo negou por meses as subnotificações no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, até as últimas revisões revelarem que o saldo de vagas com carteira assinada em 2020 caiu pela metade. O benefício da dúvida presumiria uma falha técnica – já grave –, mas os renitentes esforços do Planalto para distorcer e ocultar dados lhe tiraram esse benefício.

A transparência não é concessão do Estado, mas um dever constitucional crucial para erigir a confiança e a responsabilidade essenciais ao funcionamento da democracia e da economia de mercado. Um dos cinco princípios da administração pública, a “publicidade” é chave para fiscalizar a aplicação dos demais, garantindo que as leis estão sendo cumpridas (“legalidade”) e os recursos e serviços públicos estão sendo bem geridos (“eficiência”) de maneira equitativa (“impessoalidade”) e ética (“moralidade”). Indispensável à formulação de políticas públicas, a transparência é o principal instrumento de combate à corrupção e promoção da participação popular nos negócios públicos.

Se há que preservar informações pessoais ou imprescindíveis à segurança nacional, na gestão pública o sigilo é a exceção, e a transparência, a regra. Mas a intenção do governo de subverter essa lógica é indisfarçável. Emblematicamente, a sua primeira derrota, logo no primeiro mês, foi a revogação de um decreto que ampliava a discricionariedade de servidores para classificar documentos como sigilosos.

A exemplo do que fez o Exército com o inquérito sobre a participação ilegal do intendente Eduardo Pazuello em atos políticos, o Executivo decretou sigilo de “cem anos” sobre os crachás de acesso dos filhos de Jair Bolsonaro ao Planalto, sobre sua carteira de vacinação e até sobre a matrícula escolar de sua filha. A Presidência mantém sob sigilo os pareceres técnicos que a orientam a vetar ou sancionar leis, e instrui os ministérios a avaliar o “risco político” nas respostas a pedidos via Lei de Acesso à Informação.

Segundo levantamento do Globo, o governo tem a menor taxa de pedidos concedidos – 64,9%, enquanto na gestão Temer foram 67,5% e na gestão Dilma, 71,1%. A Controladoria-Geral da União aponta que, de 930 bases de dados indevidamente mantidas sob sigilo pelo Executivo, 349 estavam previstas para ser veiculadas pela atual gestão.

Quando os dados contrariam o governo, ele “mata” o mensageiro. Após a divulgação de dados sobre desmatamentos do Inpe, seu diretor foi exonerado sob a alegação de que estaria manchando a reputação do Brasil “a serviço de alguma ONG”. O governo tentou ocultar pesquisas da Fiocruz sobre drogas e retirar dados de violência policial do anuário sobre direitos humanos, além de ter cortado verbas para o Censo do IBGE.

Na pandemia, tentou suspender os prazos para as respostas a pedidos de informação e ocultar dados sobre a doença, forçando a imprensa a criar um consórcio para garantir informações confiáveis.

Valendo-se das emendas de relator, imunes ao monitoramento e aos critérios que determinam a distribuição de emendas parlamentares, Bolsonaro criou um orçamento secreto para comprar apoio parlamentar.

A cultura do sigilo é seletiva. Bolsonaro vetou o trecho da Lei Geral de Proteção de Dados que assegurava proteção de dados das pessoas que apresentassem pedidos de acesso a informações; é investigado pelo Supremo Tribunal Federal por vazar uma investigação sigilosa da Polícia Federal; e seu filho Carlos é suspeito de negociar a aquisição de sistemas de espionagem high tech para o Planalto.

É discutível que a verdade seja “a primeira vítima da guerra”, mas é fato que a verdade é a primeira vítima das autocracias. Bolsonaro afirma como um princípio de seu governo a máxima bíblica “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. Mas a frequência com que se desmente, oculta e distorce dados, dissemina desinformação e agride a imprensa revela o seu verdadeiro apreço pela liberdade dos brasileiros.