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Um bode no altar do governo

Marcos Cintra foi sacrificado por Paulo Guedes para atender a mais um rompante de Jair Bolsonaro. O altar do sacrifício foi a incompetência do governo

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Por Notas & Informações
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Como um bode expiatório, o secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, foi sacrificado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, para atender a mais um rompante do presidente Jair Bolsonaro. O altar do sacrifício foi a incompetência do governo, incapaz, em seu nono mês de mandato, de se articular internamente e de fixar planos, programas e rumos claros para toda a administração.

Exemplo dessa incapacidade é o recorrente conflito entre os interesses comerciais do País, fortemente ligados ao agronegócio, e os tropeços diplomáticos do presidente da República, do ministro de Relações Exteriores e até do ministro da Economia, autor de um comentário grosseiro sobre a mulher do presidente da França.

A demissão do secretário Marcos Cintra foi motivada, certamente, por algo mais que seu apego à ideia de recriação da CPMF, a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira. Internado em um hospital de São Paulo, em recuperação de uma cirurgia, o presidente da República reagiu à divulgação de pormenores sobre um plano de reforma tributária defendido pelo economista Marcos Cintra. Não havia no governo, ainda, um entendimento sobre todos aqueles detalhes.

Em manifestação por uma rede social, o presidente voltou a rejeitar o retorno da CPMF, mesmo com novas características, e qualquer aumento da carga tributária. Têm oscilado, no entanto, as declarações presidenciais sobre o assunto. Atendendo o ministro da Economia, ele chegou, há dias, a admitir, sob condições, a discussão do assunto.

Embora tenha sacrificado o secretário da Receita, o ministro Paulo Guedes tem sido, também, um insistente defensor da ressurreição da CPMF. Com esse tributo, disse ele no começo de setembro, seria possível pegar empresas como Netflix e Uber, típicas da “nova economia”. Não houve reação do presidente.

O ministro Paulo Guedes foi simplesmente mais cauteloso que Marcos Cintra ao falar sobre o alcance do imposto. Numa explicação menos cuidadosa, o secretário da Receita havia apontado a taxação até de igrejas para indicar a eficiência da nova CPMF. O presidente, nessa ocasião, mostrou-se furioso.

Mas o sentido das duas declarações é exatamente o mesmo, em termos técnicos. Faltou alguém explicar esse ponto ao presidente Bolsonaro, obviamente despreparado para tratar desse assunto – e de tantos outros, como interesses de Estado, política internacional, contas públicas, comércio exterior, política educacional, impessoalidade administrativa e requisitos da laicidade estatal.

O ministro Paulo Guedes sempre defendeu e continua defendendo o “imposto único”, disse o ex-secretário Marcos Cintra um dia depois da demissão. Poderia ter mencionado, para sustentar essas afirmações, os comentários de Guedes sobre a possível arrecadação, por ele estimada entre R$ 100 bilhões e R$ 150 bilhões. O ministro defendeu a adoção desse imposto, em muitas ocasiões, como substituto da contribuição patronal para a Previdência. Terá condições de continuar defendendo?

Se insistir, encontrará a oposição de seu chefe e a dos presidentes da Câmara e do Senado e de muitos parlamentares, além das críticas de economistas muito respeitados. A incidência cumulativa da CPMF é só um de seus defeitos. Qual sua base econômica? Não é a produção nem a circulação de bens e serviços, nem operações financeiras (como a compra de ações), nem o pagamento ou recebimento de rendas, mas a mera movimentação de dinheiro. Por que não ressuscitar a velha tributação por cabeça, o imposto pago pelo súdito por estar vivo?

Mas a alternativa mais provável também será complicada. Sem a CPMF e os bilhões estimados pelo ministro, sobrará alguma proposta governamental de reforma tributária? Será preciso recomeçar do zero? Quanto tempo se consumirá?

Com a Receita Federal sob nova administração, sobrará talvez algum ganho político. Uma substituição cuidadosa poderá evitar investigações consideradas inoportunas. Dormindo melhor, pessoas ilustres pouparão energia para servir à República. Depois do Coaf, mais uma fonte de dissabores poderá ser afastada. Nem tudo é CPMF.