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Um contrabando no pacote econômico

Incorporação de mais pessoas muito necessitadas no programa Bolsa Família era um problema que o governo deveria ter enfrentado no começo do ano

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Por Notas e Informações
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Além de matar milhares de pessoas, lotar hospitais e forçar milhões ao confinamento, a nova pandemia devasta a economia global, derrubando o consumo, a produção e o emprego, com danos visíveis há semanas, mas só agora o Executivo brasileiro decidiu enfrentar seus efeitos econômicos. Segundo o ministro da Economia, Paulo Guedes, as medidas anunciadas na segunda-feira à noite injetarão nos mercados R$ 147,3 bilhões e protegerão principalmente os mais vulneráveis. As novidades são bem-vindas, apesar do atraso, e foram aprovadas no mercado. Mas o conjunto de ações é tímido e revela um governo ainda hesitante.

Chama logo a atenção o impacto fiscal do pacote: é minúsculo, quase nulo, como confirmou o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida. Pergunta inevitável: se é possível agir sem ampliar o buraco das contas públicas, por que tanta demora? A resposta parece bem clara. A equipe econômica só agiu agora porque demorou a reconhecer os efeitos da pandemia.

Falando a uma rádio na manhã de ontem, o presidente da República insistiu em chamar de histeria a preocupação com os danos econômicos do coronavírus. O ministro da Economia procedeu até o último fim de semana como se estivesse alinhado a esse ponto de vista. Só então, pressionado pelo presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, reagiu de forma diferente, prometendo medidas em 48 horas.

As medidas foram concluídas às pressas. No meio da tarde de segunda-feira continuava indefinido o horário de apresentação. O anúncio, afinal, quase coincidiu com uma entrevista de enorme repercussão do presidente americano, Donald Trump. Nessa entrevista ele admitiu o risco de uma recessão na maior economia do mundo. Seu obediente discípulo Jair Bolsonaro estaria disposto a classificá-lo também como histérico?

Quanto ao pacote, convém, para começar, fazer algumas qualificações. Em primeiro lugar, é um tanto exagerado falar de injeção de R$ 147,3 bilhões. Parte desse valor será apenas adiantada. É o caso da antecipação, para abril e maio, de parcelas do 13.º pagamento a aposentados e pensionistas. Isso corresponde a R$ 46 bilhões. Outros R$ 12,8 bilhões serão liberados com o pagamento, em junho, do abono salarial antes previsto para ser liquidado entre junho e dezembro.

O conjunto inclui medidas especialmente oportunas para as empresas, como a ampliação por três meses do prazo de pagamento do FGTS, com impacto de R$ 30 bilhões. Também será adiado por três meses o recolhimento da parte da União no Simples Nacional. Essa parte equivale a R$ 22,2 bilhões. Mas todo esse dinheiro deverá ser cobrado. Em suma: haverá mudança no cronograma do fluxo de caixa, mas sem alteração, no final, dos valores previstos.

A única medida com claro impacto fiscal nem deveria estar nesse pacote. Essa medida é a liberação de cerca de R$ 3,1 bilhões para incorporação de mais pessoas muito necessitadas no programa Bolsa Família. A iniciativa deverá beneficiar 1,2 milhão de famílias, segundo informou no Twitter o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni. Com isso a fila de espera será eliminada, de acordo com a equipe econômica.

A fila de espera para ingresso no programa Bolsa Família aumentou rapidamente a partir de maio, quando o governo reduziu o ritmo de incorporação. Reportagem do Estado já havia mostrado a situação desses milhões de pobres e uma de suas consequências – grupos enormes pressionando prefeituras, principalmente no Nordeste, em busca de ajuda para sobreviver.

Esses milhões já estavam em péssima situação bem antes das primeiras notícias sobre o coronavírus na China. O governo jamais deveria ter contribuído para a formação dessa fila. Mas o problema se acumulou e, diante disso, as autoridades deveriam tê-lo enfrentado no começo do ano. A solução agora prometida entra como contrabando, portanto, num atrasado pacote de ações contra os efeitos econômicos do coronavírus. Com esse contrabando se cruzam duas histórias, a da pandemia de um vírus e a do Bolsa Família, menos épica, mas também dramática e infelizmente vergonhosa em alguns de seus episódios.