Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Um Estado para chamar de seu

Eleito por suas críticas ao aparelhamento do Estado pelo PT, Bolsonaro quer subvertê-lo em instrumento de seus interesses particulares

Exclusivo para assinantes
Por Notas & Informações
2 min de leitura

À época da ditadura, a pior ofensa que se podia fazer à Polícia Federal (PF) era dizer que era um órgão de governo, não de Estado. Caudatário daquele regime de exceção, Jair Bolsonaro, em seu arremedo de autocracia, dá um passo além: quer transformar a PF em sua guarda pretoriana, para não dizer sua milícia particular.

Como mostrou recente reportagem do Estadão, Bolsonaro acumula ao menos duas dezenas de mudanças na PF, um volume sem precedentes na história da República. Os delegados afastados têm em comum o fato de terem contrariado o presidente de alguma forma, em geral investigando zelotes bolsonaristas.

Seria tentador dizer que Bolsonaro confunde interesses pessoais com interesses de governo e de Estado. Mas o fato de que os primeiros sempre prevalecem revela que ele distingue bem as três dimensões e quer subvertê-las por completo: o Estado a serviço do governo; o governo a seu serviço.

O aparelhamento das forças de segurança é talvez a única tarefa à qual o ergofóbico presidente se dedica com afinco, seja porque formam suas bases eleitorais, seja pelos seus apetites autoritários, seja para apaziguar ressentimentos recalcados: o capitão enxotado do Exército por insubordinação e sedição, agora se quer generalíssimo.

“Meu Exército” é como Bolsonaro se referiu mais de uma vez à corporação do Duque de Caxias. Seguindo a cartilha do caudilho Hugo Chávez, a quem já declarou admiração, Bolsonaro colonizou o governo com militares. Mesmo após a sua malograda tentativa de “alinhar” as Forças Armadas, que levou à demissão dos seus comandantes, elas se permitiram confundir, em alguns momentos, com o bolsonarismo, como no desfile dos blindados no coração de Brasília para intimidar o Congresso e o Supremo ou ao tolerar a participação do general Eduardo Pazuello em manifestações políticas (e golpistas). 

Bolsonaro chegou a ensaiar um projeto de lei que lhe permitiria convocar “mobilização nacional” para assumir as Polícias Militares e intervir nos Estados durante a pandemia. Recorrentemente ele acena com novos privilégios às forças de segurança. As hostes bolsonaristas já mobilizaram as forças policiais para reprimir manifestações pacíficas contra o governo e orquestraram motins em vários Estados.

Sob o comando de André Mendonça, agora ministro do STF, a Advocacia-Geral da União e o Ministério da Justiça foram subvertidos em instrumentos de defesa de correligionários bolsonaristas e de perseguição a seus críticos. Para proteger sua prole, Bolsonaro já tentou interferir na Receita, Coaf, TCU, STJ. Além da PF, a Procuradoria-Geral da República e a Agência Brasileira de Inteligência são hoje comandadas por leais servidores da família Bolsonaro.

São manobras típicas de quem vê nos votos de 2018 não um mandato de governo, mas de posse do Estado. Órgãos de controle, agências reguladoras, postos no exterior, estatais, tudo é tratado como uma extensão da Casa Bolsonaro.

Os Conselhos de Estado não extintos foram transformados em conchavos interministeriais; a TV Brasil (antiga “TV Lula”) foi transformada na “TV Bolsonaro”; os órgãos de Educação e Cultura, em casamatas de guerrilheiros culturais. Às instituições responsáveis por pautas que Bolsonaro hostiliza ou julga inúteis ao seu projeto de poder, como o Meio Ambiente ou a Ciência, resta o sucateamento.

Com sua capacidade congênita de farejar a lealdade oportunista, Bolsonaro instalou um timaço de sabujos desqualificados em postos estratégicos – na Saúde, na Educação, nas Relações Exteriores, no Meio Ambiente e nos Direitos Humanos, entre outros. Esse pessoal cumpre à risca a função de consumir o debate público em polêmicas irrelevantes, enquanto o presidente transaciona com o Centrão sua manutenção no cargo e se dedica à campanha eleitoral. A fórmula do “mito” para 2022 está contratada: reacionarismo na mídia; fisiologismo, clientelismo, patrimonialismo e nepotismo no Estado.

É uma tarefa hercúlea identificar qual dos princípios da administração pública foi o mais violentado por Bolsonaro, se a legalidade, a moralidade, a publicidade, a eficiência ou a impessoalidade, mas este último é fortíssimo candidato.