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Um imenso desafio para o jornalismo

Pela qualidade do debate democrático, talvez seja necessário adaptar os manuais à realidade segundo a qual nem tudo o que o atual presidente produz é digno de ser noticiado

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Por Notas & Informações
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O triunfo do presidente Jair Bolsonaro depende fundamentalmente da degradação do valor das instituições democráticas no imaginário coletivo. O jornalismo profissional e independente, base para a existência de uma sociedade livre e participativa, é uma dessas instituições-alvo.

Os cidadãos não defenderão as instituições ante o ímpeto liberticida de Bolsonaro se não acreditarem que um Congresso independente em relação ao governo é condição indispensável para uma democracia vibrante ou que é importante respeitar as decisões da Suprema Corte, ainda que delas se possa discordar, porque isso significa enxergar na Justiça, e não na força bruta, o meio apto para a resolução civilizada de conflitos. O mesmo vale para o jornalismo profissional e independente, ou seja, o jornalismo que preza pela ética e pelo compromisso com a verdade factual.

Bolsonaro já atacava jornalistas desde antes de assumir a Presidência da República. Eleito, os ataques só recrudesceram, pois desqualificar o papel da imprensa como uma das vigas-mestras do Estado Democrático de Direito é essencial para um autocrata como ele.

Quanto mais porosa for a fronteira que separa verdade e mentira, tanto mais fácil será para Bolsonaro impor à sociedade uma “realidade” à prova de escrutínios racionais, pois sustentada apenas por crenças e devoção pessoal ao presidente. Essa confusão lhe favorece. “O súdito ideal”, ensinou Hannah Arendt, “não é o nazista convicto ou o comunista convicto, mas aquele para quem já não existe diferença entre o fato e a ficção, entre o verdadeiro e o falso.”

Bolsonaro concebe “governo” como exercício de mando e conservação de poder pessoal. Por isso, jamais se preocupou em elaborar algo minimamente assemelhado a um plano de governo. O que se vê há três anos e meio, ao contrário, é um presidente desaprumado, alguém que apenas reage aos humores das mídias sociais digitais, ambiente que Bolsonaro toma como pulso da realidade, a fim de manter unida a sua base de apoiadores. Aí está o resultado. Em todas as áreas fundamentais para o desenvolvimento de qualquer país – economia, educação e cultura, saúde, meio ambiente e relações internacionais – o que se vê é um cenário de terra arrasada. Em grande medida, a sociedade só tomou conhecimento desse descalabro por meio do trabalho da imprensa.

Um governo que tem muito a esconder depende da crença de seus apoiadores nas versões oficiais para se sustentar. Logo, precisa desqualificar os portadores de más notícias. Bolsonaro é um inimigo da transparência e da verdade factual. Um presidente assim impõe um extraordinário desafio para o jornalismo, pois à imprensa não é dado simplesmente ignorar o que diz o presidente da República. Em qualquer país do mundo, o chefe de governo é o principal produtor de fatos potencialmente noticiosos.

Ao mesmo tempo que, todos os dias, a imprensa é desacreditada por Bolsonaro, tem de manter a sociedade informada sobre os movimentos de um presidente que anuncia dia e hora para tentar um golpe de Estado caso seja derrotado na próxima eleição; um presidente que engaja os cidadãos em debates infrutíferos, muitas vezes pautados por não questões, como a segurança do sistema eleitoral. Qual o papel do jornalismo profissional e independente quando o País é governado por um presidente que, em nome de seus interesses particulares, impõe uma agenda que estimula ressentimentos e explora medos dos cidadãos em detrimento dos fatos?

Cabe ao jornalismo dar direção e unidade às informações que apura com rigor técnico e compromisso ético. Isso significa confrontar as “narrativas” criadas no Palácio do Planalto com a verdade factual e tentar, na medida do possível, dissipar a desconfiança dos cidadãos nas instituições, um sentimento que serve de substrato para os delírios de poder de Bolsonaro. Para que a imprensa seja bem-sucedida nessa tarefa, talvez seja necessário adaptar os manuais de jornalismo à realidade segundo a qual nem tudo o que este presidente da República produz é digno de ser noticiado.

É claro que sempre haverá indivíduos imunes a informações que contrariem suas crenças. Mas deles se ocupa a psicologia. A imprensa deve se preocupar com a qualidade do debate democrático.