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Um país imaginário

Várias passagens da mensagem indicam preocupante litígio do governo com a realidade

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Por Notas & Informações
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Várias passagens da mensagem do presidente Jair Bolsonaro ao Congresso, lida anteontem na reabertura dos trabalhos legislativos, indicam preocupante litígio do governo com a realidade. Preocupante não apenas porque edulcoram o difícil momento por que passa o País e superestimam os resultados da errática atuação do governo, mas também porque sustentam que “caminhamos para um ambiente fértil de emprego e prosperidade”. Oxalá fosse assim.

É natural que o governo queira destacar os aspectos que julga positivos de sua atuação, mas não pode fazê-lo a ponto de insultar a inteligência alheia. A mensagem do presidente afirma, por exemplo, que sua gestão conseguiu a “aprovação de medidas eficazes”, sobretudo as “demandas das áreas econômica e social”, graças à “construção de relações pautadas por metas e projetos estratégicos com o Legislativo”. Numa única frase, amontoam-se devaneios para todos os gostos.

Raras foram as “medidas eficazes” aprovadas no Congresso no ano passado, graças à evidente desarticulação política do governo. Medidas relevantes, como a reforma da Previdência, só saíram porque as lideranças parlamentares abraçaram a causa, já que o próprio presidente Bolsonaro expressou dúvidas sobre a matéria. É igualmente risível a menção a “metas e projetos estratégicos”, pois, com inquietante frequência, o governo não consegue indicar com clareza que rumo pretende seguir em temas fundamentais, como a reforma tributária e a reforma administrativa.

Não é possível falar em “construção de relações” com o Legislativo ante a precariedade dessas relações. No entanto, Bolsonaro diz, em sua mensagem, que “o governo se mostrou propositivo e apresentou reformas ousadas”, o que não aconteceu – o que se viu foi um parlamentarismo informal, sob a liderança dos presidentes da Câmara e do Senado, que articulou e tocou as reformas com escassa ou nenhuma participação do Palácio do Planalto. E a mensagem presidencial informa que isso vai continuar neste ano, pois Bolsonaro, “em seu dever de governança e zeloso pelos valores democráticos de independência e soberania dos Poderes, tem oferecido cada vez mais protagonismo ao Legislativo”. Ou seja, o presidente travestiu de respeito institucional o que não passa de falta de capacidade de articulação política.

Do mesmo modo fantasioso, exaltou a inauguração de um “novo Brasil” a partir de sua posse, dizendo que “o País começou a trilhar o caminho da liberdade e a ganhar projeção mundial”, que “o viés ideológico deixou de existir em nossas relações com o exterior” e que “o mundo voltou a confiar no Brasil”. Ademais, diz o presidente, “melhoramos o ambiente de negócios, proporcionando mais oportunidades para que os empreendedores prosperem”.

A irrealidade dessas e de outras passagens fazem a mensagem presidencial soar mais como peça de campanha eleitoral do que como o traçado da rota político-administrativa que o Executivo tem a obrigação constitucional de comunicar ao Parlamento que seguirá no ano legislativo. O caráter eleitoreiro fica ainda mais explícito quando a mensagem, ao enumerar os “mais caros” desafios do governo para os próximos anos, coloca, em primeiro lugar, a redução da criminalidade – discurso que rendeu e certamente ainda renderá votos a Bolsonaro, mas sobre o qual o Executivo federal pouco tem a fazer, como, de fato, pouco tem feito.

A despeito disso tudo, há no governo funcionários altamente qualificados e genuinamente dedicados a reverter a crise e a recolocar o País no caminho do desenvolvimento. Contudo, para que o trabalho desses servidores não seja desperdiçado em meio às confusões protagonizadas pelo Palácio do Planalto, é preciso que o presidente da República cumpra, ele mesmo, sua função primordial, qual seja, a de exercer a liderança política que seu cargo inspira. O problema é que essa liderança só será autêntica e efetiva se o presidente parar de fantasiar sobre um país que não existe.