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Um plano incoerente

Documento da Saúde é coerente com um presidente que nega a importância das vacinas

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Por Notas & Informações
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No fim da semana passada, o Ministério da Saúde entregou ao Supremo Tribunal Federal (STF) um “plano nacional de vacinação” contra a covid-19 que, a bem da verdade, não chegava a ser propriamente um plano. O documento não continha data para início da campanha, não determinava que imunizantes seriam utilizados para cada grupo e previa vacinar apenas um quarto da população – 51,4 milhões de brasileiros. Ou seja, com boa vontade, o tal “plano” não passava de uma mal elaborada carta de intenções. A urgência do momento, com mais de 181 mil mortos e um nítido crescimento do número de infectados, requer muito mais do que isso.

Diante de tão relevantes lacunas, incompatíveis com a gravidade da crise e imperdoáveis pelo tempo que o governo federal teve para, se assim quisesse, preparar um bom plano de vacinação de toda a população, o ministro Ricardo Lewandowski, relator de uma ação no STF que trata da obrigatoriedade da vacina, determinou que a pasta reescrevesse o documento estabelecendo um cronograma com a previsão de início e término da vacinação de todos os brasileiros.

Questionado pelo Estado, o Ministério da Saúde afirmou que “seria uma irresponsabilidade” inserir no documento um cronograma de vacinação e um rol de imunizantes para cada grupo a ser vacinado sem “dados científicos suficientes”. Ora, à frente da pasta está um general intendente da ativa. O ministro Eduardo Pazuello sabe muito bem que um plano pode ser condicionado. A cada variável, prevê-se uma determinada ação.

Mas o plano não foi mal-ajambrado por acaso. É resultado direto, primeiro, da falta de disposição do governo federal de enfrentar a emergência sanitária com a seriedade que ela impõe. O presidente Jair Bolsonaro sempre negou a gravidade da pandemia e em nenhum momento nesta triste trajetória de nove meses mostrou qualquer sinal de compaixão por seus concidadãos ou de respeito aos fatos e às recomendações das autoridades sanitárias. Ao contrário, pôs-se a afrontar tanto uns como as outras em um sem-número de ocasiões. Nunca será demais rememorar que Pazuello é o terceiro ministro da Saúde nomeado por Bolsonaro em meio à pandemia. Seus antecessores foram defenestrados exatamente por não terem se curvado diante do total descaso do presidente pela vida dos brasileiros.

Em sua deliberada cegueira negacionista – ou melhor, com os olhos voltados apenas para sua campanha à reeleição –, Bolsonaro também jamais manifestou qualquer interesse em viabilizar uma campanha de vacinação séria contra a covid-19 para toda a população. O presidente chegou a dizer que preferia gastar dinheiro com o “tratamento” da doença – sabe-se bem qual – do que com vacinas, o que é incoerente com seu discurso em favor da retomada da “vida normal” da atividade econômica. Pois, se há algo que pode determinar a volta sustentável da atividade econômica, é uma bem-sucedida campanha de vacinação. Jair Bolsonaro deveria ser o primeiro a mobilizar toda a estrutura de governo para este fim. Se não por compaixão, por mero pragmatismo.

O plano de vacinação ao qual a Nação teve acesso na semana passada, portanto, é um plano bastante coerente com um governo que nega a gravidade da pandemia e jamais considerou a vacinação de toda a população uma prioridade nacional. A forma atabalhoada como foi elaborado e as flagrantes lacunas que continha dão a entender que o “plano” nada mais foi do que uma tentativa do governo federal para não ficar para trás na absurda disputa política que trava com o governo de São Paulo sobre a primazia na campanha de vacinação.

A única disputa que importa neste momento é a da ciência e da boa governança contra um vírus que já enlutou dezenas de milhares de famílias no País. Passa da hora de o ministro da Saúde agir à altura do desafio e honrar a tradição de excelência do Brasil em campanhas de vacinação. As condições objetivas estão dadas. A ver até quando vai sua disposição de negá-las por subserviência.