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Uma lei autoritária

A nova lei de segurança da França viola direitos fundamentais de forma inaudita

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Por Notas & Informações
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A sociedade francesa está com medo de uma nova onda de ataques terroristas, medo da violência policial contra negros e imigrantes, medo de perder direitos que são a essência da república, ora sob ameaça sem precedentes. É bastante significativo que as multidões que ocupam as ruas de Paris e de outras cidades da França há dias gritem o tempo todo o lema nacional francês: “Liberdade! Igualdade! Fraternidade!”.

Foi assim na tarde do sábado passado, quando milhares de manifestantes se reuniram no entorno da Torre Eiffel para mais um dia de protestos contra a brutal agressão a Michel Zecler, um produtor musical negro surrado com cassetetes por três policiais brancos, no dia 21 passado. Zecler correu da polícia por não estar usando a máscara de proteção contra a covid-19, o que está sujeito à multa em Paris.

Os manifestantes também protestavam contra uma lei recentemente aprovada pela Assembleia Nacional que, sob pretexto de combater a escalada de ataques terroristas na França, põe em risco a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa no país, além de favorecer que policiais como os que agrediram brutalmente Zecler não sejam punidos.

Três pontos da chamada Lei de Segurança Global, que ainda precisa passar pelo Senado, representam risco concreto às liberdades civis na França.

Um deles autoriza a prisão por um ano – além da aplicação de uma multa de 45 mil euros (R$ 287,7 mil) – de qualquer cidadão que divulgue de forma “mal-intencionada” imagens de policiais em ação. O que haverá de caracterizar a “má intenção”? Não se sabe. Trata-se, pois, de uma lacuna inconcebível em um Estado Democrático de Direito.

Isso significa que, caso o Senado aprove a Lei de Segurança Global sem alterações, todas as forças de segurança da França terão enorme margem para decidir quando imagens da atuação de seus agentes vieram a público de forma “mal-intencionada” e quando essa divulgação causou “prejuízos mentais” aos agentes. Temendo a prisão e a aplicação de tão vultosa multa, é lícito inferir que muitos cidadãos, incluindo os jornalistas, passarão a ter receio de filmar e expor as ações violentas da polícia francesa. E é sabido que muitos casos passariam ao largo do conhecimento público – e, portanto, da punição – não fossem as filmagens das câmeras de TV e dos celulares.

Ora, não será impedindo que a sociedade tome conhecimento dos casos de violência policial que essa chaga, longe de ser um problema restrito à França, será superada. Decerto não será por meio do acobertamento dos agentes que abusam do monopólio do emprego da violência que os casos de agressão policial vão diminuir.

De acordo com a Lei de Segurança Global, a polícia também pode usar imagens de câmeras de segurança sem autorização judicial e empregar drones com tecnologia de reconhecimento facial para monitorar a participação dos cidadãos em manifestações públicas. “(A Lei de Segurança Global) é a reversão de nosso modelo social a um que poderíamos nomear, sem exageros, de Estado policial”, disse ao jornal The Washington Post o advogado Vincent Brengarth, autoridade em Direito Penal e liberdades civis da república francesa.

O teor autoritário da nova lei não passou despercebido por órgãos ligados à defesa dos direitos humanos. Em nota, a Comissão Consultiva Nacional de Direitos Humanos afirmou que “nenhuma das instituições encarregadas da defesa dos direitos fundamentais da França foi consultada” sobre o texto. Por sua vez, o Conselho de Direitos Humanos da ONU também criticou a lei francesa por conter “violações significativas dos direitos humanos e das liberdades fundamentais”.

De 2012 para cá, houve 250 mortes causadas por ataques terroristas na França. Dia após dia, sucedem-se os casos de violência policial. Não se pode minimizar a gravidade desses problemas, que merecem a devida resposta do Estado. Mas essa resposta não pode ser uma violência em si mesma, isto é, não pode colocar em risco direitos e liberdades fundamentais quando a sociedade não se mostra disposta a abrir mão deles.