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Vara autoritária

É prerrogativa do prefeito, em nome do povo que o elegeu, propor mudanças na lei

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Por Notas & Informações
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Através de uma liminar concedida no final do ano passado, a 14.ª Vara da Fazenda do Tribunal de Justiça de São Paulo está impedindo a Prefeitura de encaminhar à Câmara Municipal qualquer projeto de lei que promova ajustes na Lei de Zoneamento. Sob o pretexto de defender os interesses da sociedade, supostamente representada pela meia dúzia de associações que moveram a ação, o Judiciário está impedindo a sociedade de promover seus interesses por intermédio de seus representantes eleitos nos Poderes Executivo e Legislativo. É mais uma peça a avolumar a grotesca “jurisprudência” do ativismo judicial brasileiro.

Desde 2017 a Prefeitura realiza um processo para formatar um projeto de lei alterando a Lei de Zoneamento, que culminou com uma série de audiências públicas em 2019. Em dezembro, com o projeto a ponto de ser encaminhado à Câmara, um grupo de associações civis ajuizou uma ação solicitando a suspensão do processo, sob a alegação de vícios formais no trâmite pré-legislativo, entre eles a falta de discussão e divulgação das propostas à sociedade. Ao deferir o pedido, o Judiciário interferiu no legítimo exercício dos Poderes Executivo e Legislativo.

O Poder Judiciário tem o dever de julgar se os atos dos outros dois Poderes estão em conformidade com as leis e a Constituição. Mas para tanto é preciso que existam esses atos. O Poder Legislativo goza de autonomia para editar as leis, que, uma vez promulgadas, podem ser submetidas à apreciação da Justiça. O controle jurisdicional sobre o processo de confecção das leis é possível, mas como medida excepcional, sob condições excepcionais. Em primeiro lugar, é preciso que haja um projeto em trâmite que viole o processo legislativo. Além disso, o Judiciário só pode intervir se provocado por um parlamentar, por meio de um mandado de segurança.

A liminar da Justiça paulista não cumpre nenhum destes requisitos: não é um mandado de segurança, não foi solicitada por algum parlamentar e não se destina a um projeto em tramitação, mas a um projeto anterior à tramitação, que fica, assim, impedida.

Como disse o falecido ministro Teori Zavascki em acórdão da Suprema Corte, “a prematura intervenção do Judiciário em domínio jurídico e político de formação dos atos normativos em curso no Parlamento, além de universalizar um sistema de controle preventivo não admitido pela Constituição, subtrairia dos outros Poderes da República, sem justificação plausível, a prerrogativa constitucional que detêm de debater e aperfeiçoar os projetos, inclusive para sanar seus eventuais vícios de inconstitucionalidade”.

Alguns membros do Judiciário brasileiro tem se destacado por seu apetite por subtrair aos outros Poderes as suas prerrogativas, colocando-se como pretensos intérpretes da vontade do povo. Recentemente, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo precisou acionar o Supremo para derrubar uma liminar do Tribunal de Justiça que a impedia de fazer tramitar a reforma da previdência. Em 2016, o próprio Supremo, representado pelo ministro Luiz Fux, obrigou o Senado a devolver à Câmara o projeto de lei das malfadadas “10 Medidas Contra a Corrupção” para que fosse votado novamente, mas sem as modificações feitas pelos deputados, sob a exótica justificativa de que o projeto, por ser de iniciativa popular, não poderia ter sofrido mudanças.

É prerrogativa do Prefeito de São Paulo, em nome do povo que o elegeu, propor mudanças na lei em questão. Em nome do povo, qualquer cidadão tem a prerrogativa de contestar estas mudanças. Mas quem deve decidir se as mudanças atendem ou não aos interesses do povo são os seus representantes eleitos na Câmara legislativa. O Judiciário pode julgar se esta decisão é ou não compatível com as leis, mas jamais pode impedir que o corpo legislativo decida sobre assunto de sua competência, como está acontecendo agora. A pretexto de defender os direitos do povo a Justiça os está violando.